Jaime Latino Ferreira -
( DAS RAZÕES DA ADOPTADA )
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Vá meninos, chega de conversa!
Eu para aqui a trabalhar qual Gata Borralheira, Cinderela ou Cenerentola, como queiram, e vocês nessa blá, blá de santa vidinha.
Não faltava mais nada, não foi para isso que me casei com o meu príncipe …
A menos que esta seja a parte da história sempre omitida e que me deixa de fora!
Viveram felizes para sempre ou a felicidade alcançada afoga-se num miserabilismo gerador sempre de novas borralheiras?
Alto lá, não foi para isto que eu vos adoptei!
Não haverá enredo que não seja sempre gerador de outras e não equacionadas assimetrias?
Numa desigualdade permanente que a mim, em relação à gata, bastasse já o marido, me coloca em absoluta desvantagem!?
Estiveram para aí a falar de Deus e do diabo e de mim, esperam o quê?
Que me acanhe numa docilidade canina ou sinuosidade felina e não pregue prego nem estopa?
Que aceite assim, sem mais, ver a minha vida transformada em desenho animado sem margem para criar enredo, como simples figurante?
Que não me deixe encantar e recriar?
Cantar esta desdita como se fosse bendita?
Que não escrevesse, por exemplo, que se a Tita se aninha nas pernas de seu dono para dormir, ela se vai esgueirando, noite fora, até se aninhar, feliz, na minha almofada?
Ou que, se se deita no colo de meu dono, é no meu regaço que finalmente descansa e reconhece com um olhar pungente as vantagens de não ter, sobre si mesma, o permanente fumaréu do adoptado!?
Que é comigo que conta se quer comer ou ter água sempre fresca?
Que sou eu que lhe trato da areia daquela praia em que urina ou defeca?
Que é comigo que ela brinca, incansável com a bola, aquela ridícula bola presa a um cordel?
Que ela tem uma predilecção particular por todo o meu calçado?
Ou que é comigo que relaxada passeia pelo jardim sem se assustar permanentemente com a locomoção mais efusiva de seu dono?
Donos ou adoptados, que profundidade filosófica!
Pois serei eu a rematá-la!!
Imaginem, os dois (!), que eu não estava cá.
Imaginem que eu não existiria tão pouco!
Que seria de vós e sobretudo de toda a vossa divagação poético-literária!?
Que disponibilidade vos sobraria para ela?
Não me venham acusar de obreirismo!
Ou de ser demasiado terra-a-terra!!
Julgas Tita, que não vejo nesses teus olhos toda a censura que os invade!?
Julgas, meu Amor, que não sei ver onde tu andas!?
Porque se andas é porque eu te deixo andar mesmo se julgas que não ando!
Que não saberia voar como tu sonhas por esse teu infinito com que te cruzas!!
Que não reconheceria nesse teu mundo, minha Tita, toda a feminilidade que me pertence a mim e sei guardar sem alaridos, como quem a descobrisse, sempre e sempre pela primeira vez!!!
Sem alaridos e num silêncio que ao teu suplanta, minha querida gata e … meu gato!
E que caixa de ressonância sou mesmo se nas aparências, ao vosso argumentário absorvo sem falar!
Que qualidade sonora o meu calar não tem …
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Não há música
Som que se invente
Não há silêncio tão pouco
Que o meu mar o não sustente
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Não há terra em que não tente
Não há ar que fique rouco
Não há nada de repente
Não há nada não há gente
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Nada mais senão a mente
De um cantar que a tudo sente
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Canto música de repente
Do chorar de toda a gente
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Por isso, quando me calo, não é por não saber o que dizer ou quando me afasto do vosso chilrear, não é por não vos entender.
Como vos entendo tão bem, meus amores!
Entendo-vos porque sei o que é ser um gato, gata por maioria de razão ou um homem, com toda a vantagem que sendo mulher melhor vos conheço …!
Sei ter a um ao colo, já vos carreguei aos dois (!), sem deixar de ser mulher.
Sem vos deixar de amar, na vossa plenitude.
Que é também a minha!
Esta e todas as outras.
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Mia minha gatinha
Que o meu colo é tua vinha
Ébria é nele que sonhas
Nele fias tuas ronhas
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~ FIM ~
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Jaime Latino Ferreira
Estoril, Verão de 2006
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Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Abril de 2010