Fotografia de Manuela Baptista, Processamento, Maio de 2010
-
Meu caro,
( … )
Talvez seja oportuna – porque não? – a ocasião de te justificar algumas atitudes e talvez mesmo enquadrá-las num registo mais consentâneo com a tua esfera de intervenção, coisa que faço contigo e neste registo, pela primeira vez, por escrito.
Como introdução a este meu atrevimento, envio-te uma proposta – Sugestão Planificada de um Tema Transversal -, apresentada no âmbito da minha passagem pela Escola Superior de Educação de Lisboa, frequência que foi interrompida pouco depois da sua apresentação e na sequência da conclusão de uma Tese que apresentei nesta mesma escola – Estética, Poética E Outras Músicas -, em resposta a um desafio que me foi feito por um seu professor.
Como já neste trabalho se descortina nas suas conclusões, a demonstração de uma outra hipótese por mim apresentada treze anos antes, a saber, que o indivíduo singular – a infra-estrutura – não pode continuar a ser esmagado pela super-estrutura – pelas instituições – que não faz sentido se não concorrer no sentido da unidade, da individualidade indivisível, foi, como se tal fosse preciso, uma vez mais comprovada, a este nível intermédio.
A demonstração consistiu em provar precisamente esse autismo contra-natura e anti-democrático que varre este nível institucional intermédio e anquilosado e que genericamente apenas ouve quem tem peso, económico ou institucional.
Felizmente, esta tendência já começou a mudar e que terramotos tem havido!
Mas, vamos então às breves reflexões matemáticas – económicas – que pela primeira vez, repito, me atrevo a esboçar em registo escrito.
Começo pelas justificações que referi, como se a ganhar balanço para o meu atrevimento invasivo da tua área profissional.
Encontrei-me contigo durante estes últimos treze para catorze anos, salvo erro, duas vezes, antes da morte de meu pai.
Refiro-me a encontros e não a cruzamentos de passagem.
Em ambas as vezes, uma na Vossa casa ( ... ) e a outra no teu gabinete no Banco, confrontei-te de chofre com algumas reflexões que apanhadas assim a seco, certamente te terão incomodado e, pelo facto, peço-te desculpa.
Paradoxalmente, se me o sugerisses, com disponibilidade, repeti-las-ia e fundamentá-las-ia acrescentando apenas que pese embora a aparente repetitividade histórica, esta nunca se repete, sobredimensionando-se sempre quando assente na fé no Homem para não falar na Fé em Deus e que a vida é sempre feita de opções e de riscos que não adianta escamotear, porque estes existem sempre e tanto mais quanto menos equacionados ou ignorados forem.
Vou-me aproximando, apreensivo, da tua área.
Há um ano e picos atrás, na área do Projecto MUS—E que te apresentei e para o qual te sugeri patrocínio, na Assembleia-Geral da Associação Menuhin Portugal que o sustenta, presidida então por Marçal Grilo, constava da ordem de trabalhos um melindroso ponto que consistia na aprovação ou rejeição de uma proposta de diminuição real dos honorários dos animadores e professores do Projecto, uma vez que os patrocínios angariados não permitiam fazer face aos encargos previstos.
Que decisão melindrosa!
Meu Caro,
É bom saberes que embora eu tenha uma excelente retaguarda, nenhum de nós, eu ou os meus familiares, somos ricos.
Procuramos não ter dívidas, julgo que não as temos e remediamo-nos com o que vai havendo.
É claro que, para quem do exterior olhe para a nossa casa, para o nosso meio envolvente, para a nossa postura, custar-lhe-á a admitir tout court que assim seja, mas é!
A postura advém dessa leveza que nos proporciona, sem qualquer bluff, vivermos de cabeça erguida.
Se não há, não se faz, não se compra e ponto final parágrafo.
Nem tudo se resume a dinheiro, a numeração positiva.
Há longos anos que constituimos um entre muitos exemplos típicos, paradigmáticos, dessa classe média que vive no fio da navalha entre o deve e o haver.
Dizia eu, que decisão melindrosa!
Mas foi nessa Assembleia-Geral onde foi decidida uma redução real dos honorários a auferir, que eu intervi para dizer qualquer coisa como o que se segue:
A economia, que é, como tudo o mais, bipolar ou maníaco-depressiva, balança entre dois extremos, a depressão e a euforia – reflexo da especificidade humana e seu espelho quando encarada na sua globalidade -,que resultam muito mais da atitude que nela se projecta do que dos números propriamente ditos.
Claro que há condições materiais, económicas, sem as quais não se poderá pensar em crescimento real mas há, seguramente, factores humorísticos condicionantes que dependem, no fundamental, das perspectivas reais que tenhamos pela frente.
A propósito da Jubilação do cientista português Nuno Grande, dizia Paulo Cunha e Silva, no Diário de Notícias de 16 de Dezembro de 2002, na sua segunda página:
" O futuro ( as perspectivas de futuro, diria eu) é, hoje, a chave para se compreender o presente. Em momentos de descontinuidade, de fractura paradigmática (científica, cultural e social) presente e futuro trocam de posição. O futuro precede o presente e o presente ( que não existe, sublinho eu) pós-cede o futuro."
E é esta subjectividade objectiva que permite ou não inverter as coordenadas do momento que passa.
E também estruturá-las, reforçá-las como estabilizadores da economia real, sustendo, controlando ou invertendo mesmo as manifestações patológicas que a obrigam ciclicamente – porque, hélàs, a realidade é feita destes extremos que não param de se acentuar -, ciclotimicamente a deitar-se na cama do hospital ou no sofá do psiquiatra, com todas as ondas de choque associadas onde, como quase sempre, é na periferia dos centros de decisão, entre os mais frágeis e em particular no seio dessa periclitante mas estruturante classe média que estas se fazem sentir com maior intensidade.
Podíamos chamar-lhe classe média ou judeus que no tempo de Cristo a simbolizavam como aquela força social imprescindível balanceadora dos choques resultantes do confronto entre as forças endógenas e exógenas que varriam todo o Império Romano.
Classe média estruturante das sociedades modernas, democráticas, laicas mas contudo ou por isso mesmo formatadas na matriz dos Profetas ou do Messias.
Cristo morreu crucificado abrindo as portas à numeração positiva como negativa também, ambas acompanhadas pelo sinal positivo, a cruz.
Ou à luz da propagação das ondas físicas – sonoras, luminosas, etc., etc., etc.
Depois, importa talvez reforçar que a economia, transposição real/universal da matemática, não comporta apenas a numeração positiva mas também a negativa que não é apenas o que parece.
Como talvez importe aqui frisar também que já vivemos na época global do dinheiro de plástico, do cartão do deve e do haver que se vai progressivamente impondo.
Que decisão melindrosa, repito eu pela terceira vez.
Como já terás reparado, estou sempre a tentar fugir à terminologia económica que não domino e que cabe a Vós, isso sim, definir, estabelecer com rigor.
Mas, a decisão, sendo melindrosa, para mim era evidente.
Entre passar a ganhar menos ou não ter Projecto, para mim, por razões bem objectivas umas e outras bem lúdicas ou pedagógicas, não havia qualquer hesitação:
- Pois então, ganhe-se menos!
E foi esta a decisão tomada.
Até porque, isso de se ganhar menos não é assim tão linear e transparente, muito antes pelo contrário.
Sempre que se exigem e conseguem aumentos de salários, gera-se uma cadeia inflaccionista sem fim, que no fim reverte contra os meus modestos ganhos já que tudo aumenta e quem fica pior sou eu.
Pior, disse eu!
Já o mesmo não é tão transparente assim quando se dá o movimento inverso, quando se toma a iniciativa no recuo que me recuso a nominar por pudor em relação às susceptibilidades.
Ao fim e ao cabo, acaba sempre por dar para as curvas e mesmo que estas tenham de ser mais contidas e modestas.
Ganha-se também alguma disciplina orçamental e um sinal de alerta dispara e mantém-nos vigilantes.
Ganha-se alguma sobriedade que sempre vai ferindo menos a miséria generalizada que graça no mundo e às vezes mesmo à nossa porta.
A miséria de todos aqueles que não têm voz!
Exercita-se a criatividade instigada sobretudo perante situações de aperto.
Mas eu também sei que sem consumo não existe crescimento e que este é vital para o progresso humano.
Então, porque não, pensando sempre em crescimento real, em mais valia no bolso de cada qual, fazer recurso ao movimento inverso, à numeração negativa?
Outro dia, num banco onde fui tratar de assuntos relacionados com o meu mealheiro, voltei-me, subitamente, para o meu gerente de conta e, naquela pose provocatoriamente irónica que me caracteriza e que tu lá vais conhecendo, perguntei-lhe o que é que acontecia aos Bancos se a taxa de juros passasse a ser negativa?
Para meu espanto, a sua reacção não foi a de entrar paternalisticamente comigo, antes comentou:
- Sabe, no Japão, há muitos anos que os bancos praticam taxa zero.
- E, então? – perguntei-lhe eu.
- Tem sido difícil e tem havido muitas falências…
- Bem, respondi-lhe, falências é o que por cá também há, mas subsistem os melhores, os mais bem estruturados, enraizados, não é assim?
A verdade porém é que, quem me deu a melhor resposta foi a minha mulher.
É que, disse-me ela, a ser assim, os Bancos sempre ficavam com a diferença resultante das minhas aplicações, submetidas a juro negativo.
Claro, e dando-se o movimento inverso, ao contrário do que se passa com o movimento inflaccionista onde quem perde sempre é o mexilhão nessa espiral imparável, sobraria sempre nos bolsos mais qualquer coisinha que assim nunca fica.
Nos bolsos não, nos Bancos, porque intensificando-se a tendência em direcção à obrigatoriedade do dinheiro de plástico, tal implicaria o depósito bancário progressivo de todo o que corre à solta, em economia paralela, que por sua vez ajudaria a estancar o branqueamento e a tornar mais eficaz a fiscalidade e a contenção do movimento descontrolado de capitais.
Os cidadãos passariam a ter não dinheiro nos bolsos, mas o comprovativo de crédito ou de débito.
Bastaria que houvesse vontade política!
Que houvesse não, que haja e ela existe!!
O fosso abissal entre ricos e pobres iria, progressivamente, esbatendo-se.
Sobraria também sempre mais qualquer coisinha nos bolsos institucionais que poderia fazer face, com outro desafogo, à miséria gritante que assola o mundo.
E, nos depósitos a prazo, empréstimos, na compra e venda de bens móveis ou imóveis, operações de engenharia financeira, etc?
Talvez que aí bastasse, cumpridas que fossem condições que a mim me escapam mas que a Vós nem tanto, dizer que se custou x por x se vende ou pelo menos o estabelecimento de um tecto máximo que não ultrapassasse, por regra, a taxa zero.
Tudo, pelo menos, num movimento de antecipação e de iniciativa controlado e simétrico, que ninguém melhor do que os economistas poderá esboçar, delinear, desenhar ou prever.
Se é que os dados fundamentais não estão já equacionados!?
E, o que não se inverteria, com todo este movimento, a começar em matéria de segurança?
É claro, meu caro, que estas são das tais medidas que apenas fazem sentido se impostas à escala global e a começar pelos topos institucionais.
Não tenhamos dúvidas!
Como não tenhamos dúvidas também que a espiral inflaccionista, à força de tanto esticar a corda, algum dia perderá, na melhor das hipóteses, a sua elasticidade.
E depois?
Depois, que funcionem invertidas ou simetricamente, as regras do mercado.
Num tal contexto, empresas, sindicatos, escolas, autarquias, hospitais, sistemas de saúde (…), teriam seguramente margem de disponibilidade suficiente para pensar noutras coisas que não apenas o economicismo da economia, entendendo esta como "a harmonia entre as diferentes partes de um corpo organizado e seu funcionamento geral", como a define o Novo Dicionário Lello da Língua Portuguesa.
Nessa Assembleia-Geral que te referi, o bru-á-á que ouvi após a minha intervenção senti-o bem, mas não houve ninguém que me contraditasse.
Terá sido assim, apenas por razões tácticas?
E o dinheiro que se pouparia na feitura de notas, moedas, e todo o suposto dinheiro real que plastificado e quantificado, comunitária e realmente nos enriqueceria?
Até já pensei no euro-dollar ou vice-versa, para não ir mais longe!
Lá tinha, finalmente, a minha mãe, que aprender a mexer com o cartão!
E, lá tinham também as cidades cumprido o seu objectivo económico de repor a vivência económica comunitária à escala de todo o mundo!
Meu Caro,
As minhas tomadas de posição, como esta em que te elegi meu destinatário, são transparentes e simbolicamente públicas.
Este meu approach económico segue pois também para os meus destinatários habituais, o meu confessor Victor Melícias e um consultor da casa civil da Presidência da República.
Eu sempre preferi colorir ou ficcionar a realidade, directamente, sem artifícios, do que pintar ou fazer ficção para amenizar o real.
Aliás, penso que este acaba por ser um falso dilema.
A realidade é muito mais irreal ou utópica do que parece.
O que te escrevi, descontando tudo o que não domino, parece-me conter linhas de força que importaria não subestimar.
Partindo praticamente do zero, papel e caneta e o processamento, apenas para te facilitar a leitura, construi uma negatividade abrangente, de valor não especificado, potenciadora de mais valia e de riqueza e equilíbrio globais.
Assim espero.
Um abraço do teu amigo
-
-
-
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Março de 2003 Jaime Latino Ferreira, pormenor de Nós, Eu, desenho a lápis a partir de montagem fotográfica