três, padrão de fundo
I
TANGO MAR
Replico-me a mim mesmo
povoando lugares ermos
viajo e vou-vos mostrando
o que me traz navegando
Minhas réplicas trauteando
enxaguam mar de tango
dança em que descrevo
o ondular do que escrevo
Réplicas a que me atrevo
intrépida rota relevo
ao destino o mapeando
Fio condutor minha âncora
que de enseadas zarpando
não se aquieta nos seus termos
Van Gogh, autorretrato
II
ENTRE TUDO E NADA
Entre tudo e nada não se
conhece meio-termo.
Ou bem que se tem uma
duvidosa vocação messiânica ou bem que de nada serve o que se faça ou diga ou
escreva que o mesmo é dizer fazer.
Ou bem que as audiências
aferem do que façamos ou bem que, na sua ausência, o que façamos de nada serve.
Entre um extremo e o outro
não prevalece o bom senso, ponta de razoabilidade.
Como critério aferidor do
que escrevo, isto é, do que faço, não são nem as audiências nem a sua ausência
que me balizam.
Não.
Tenho para mim que é na
razão, ponderando os ângulos da questão abordada, daí o meu permanente
auto-replicar, que reside o bom senso que me leva a emitir opinião.
Se me contraditam,
ajudam-me nessa ponderação.
Se não me contraditam, o
que quase sempre acontece, eu próprio faço por me contraditar limando as
arestas ou unindo as pontas soltas que ao meu raciocínio ajudem a fundamentar
tornando-o tão abrangente quanto possível o for.
E nesta demanda prossigo
sem vacilar ou vacilando, desentorpeço a inércia que eventualmente se instale.
Há muitos anos que assim
procedo quase sempre fazendo de mim mesmo contraponto ou advogado do diabo que
ao que escrevo dê continuidade ou que à inércia, em mim mesmo, a desemborre.
Sou mais ou menos nada do
que os outros?
Sou diferente, assumo e
integro essa minha diferença.
Em democracia vale a
maioria mas vale, também ou por isso mesmo, esse lado sempre escamoteado ou a
diferença minoritária que a não ponha em cheque.
Ter esqueletos no armário,
que admirável condição para atingir a fama e a glória!
Exaltam-se as audiências
como se um disparate audível que se diga valesse por isso mesmo, por se tornar
audível e remete-se para um limbo próximo do esquecimento a razoabilidade que
prescindindo de soundbites ou de bitates não disparate a eito.
Vale, por isso, menos essa
razoabilidade ou a ambição de a ter?
Ambição.
Por dá cá aquela palha
citam-se os grandes autores que antes de o serem não o eram, outro pormenor que
por sistema se esquece a propósito da ambição que acalentavam na perseverança
que os caracterizava e depois, na prática, faz-se tábua rasa desses seus
pensamentos que se citam.
Será legítima a minha
ambição?
À democracia falta-lhe,
quantas vezes, ser adulta ou, se quisermos, o reconhecimento daqueles que,
minoritários, a contracorrente mas legitimamente remam sem esmorecer.
Ponho em causa as
maiorias?
Não, alerto para as
insufragáveis minorias nas quais eu me incluo e sem as quais as maiorias não
fazem qualquer sentido.
Entre tudo e nada há
sempre uma legítima e fundada, repito, fundada ambição que tem de prevalecer
sob pena das maiorias se tornarem em intoleráveis e insanas, execráveis
ditaduras.
retrato de Mozart
III
P VERSUS p
Vincent antes de ser Van Gogh, sendo-o
não o era.
Wolfgang antes de ser Mozart, sendo-o não
o era.
Fernando antes de ser Pessoa, sendo-o não
o era.
Antes de os virem a ser,
valiam, eles mesmos, menos por isso?
E ao que faziam, que valor
lhes era atribuído?
Ou, dito de outra maneira,
quem estaria em condições de aferir do valor do que faziam?
Retirados dos baús do
esquecimento, todos os três, só muito tardiamente se transfiguraram de anónimos
mortais em figuras imortais.
Com que obstáculos, todos
eles, não se terão confrontado em vida a começar por todas aquelas variáveis
que movidas pelos seus pares por inveja, por despeito ou por sentirem, pura e
simplesmente, as suas autoridadezinhas ameaçadas, os mantiveram, quiçá tão longa
e penosamente, na penumbra?
Ao tempo, quem diria que Vincent, Wolfgang e Fernando,
alguma vez se viriam a transformar em Van
Gogh, Mozart e Pessoa?
As pessoas têm sempre
consigo um P maiúsculo que um p minúsculo delas próprias ou de terceiras
partes, intencional e deliberadamente ou não, as faz por votar ao esquecimento
embora, em simultâneo, as desafie a sublimarem-se.
E quantos Pês de tão
maiusculíssimas pessoas não foram, ao longo da História e para sempre,
obliterados?
Quando, em tempo útil, os
melhores não são reconhecidos o que prevalece é a mediocridade que, já agora,
em muito ajuda a explicar o ponto a que chegámos.
Esta história é tão velha
como a História.
Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
+ 1
há quem obtenha sucesso instantâneo mas a pressão deste é
tão ou mais difícil de gerir do que a pressão do esquecimento e esta última,
assim em tempo de vida útil uma na outra se consubstanciem, apetrecha-nos dos anticorpos
da primeira
com exceção de + 1, os três primeiros textos foram publicados separados e
em primeira mão no mural do meu facebook
continuação de boas férias
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 8 de Agosto de 2013
António Correia, retrato de Jaime
Latino Ferreira
2 comentários:
Caro Amigo, votos de continuação de boas férias. Por aqui houve complicações de saúde, agora quase ultrapassadas (espero), houve, o que é bem mais grave, desaparecimentos muito próximos que, embora esperados, nos abalaram.
Mas queria acima de tudo referir que o li, como sempre com atenção.
Obviamente que concordo com os pontos principais da sua reflexão. Mas... será que o conceito de Democracia - para mim, Governo para o Povo, o que imediatamente pressupõe luta contra a exploração de outrem, seja sob que forma surja, e Liberdade também para o Povo -, coincide plenamente?
Para mim, é principalmente na resposta a estas questões que se distinguem as ideologias de Direita e de Esquerda, nas lutas e questões sociais. E como delas depende o bem estar dos povos o seu resultado é importantíssimo.
A continuação ficará para as nossas conversas, breves e amistosas mesmo que às vezes divirjamos, o que até pode ser salutar. Conversas breves, porque a caminhada obrigatória, em geral espera, em frente das chávenas de café da D.Lucília. Um fraterno abraço
EVB
Caríssimo,
Em relação aos problemas de saúde bem como do seu próximo recentemente desaparecido, como já tive ocasião de o expressar, aqui partilho a minha dor que à Sua se associa e os meus fortes desejos de força que num forte abraço que Lhe envio a eles os ajude a superar.
Reafirmo-o!
Quanto à outra questão que nesta Sua missiva equaciona:
Democracia versus Liberdade versus Povo versus Esquerda versus Direita.
Se todas essas noções não tiverem uma correspondência com o indivíduo concreto e singular, ele próprio portador de lateralidades e de anseios, de paradoxos, frustrações, vítima, ele próprio, de opressões e de perplexidades e se ele mesmo não se colocar à altura delas, dessas noções agindo de tal modo que as e ao Povo os façam por justificar não sairemos jamais do círculo vicioso da retórica que a uns grupos pela negação dos outros os alcandora ao poder não se efetivando, pelo seu aprofundamento, nem a Democracia nem a Liberdade tornando-se o Povo joguete da retórica em que esses conceitos são utilizados.
Senão veja-se:
A esquerda já esmagou a direita com duvidosos resultados para o Povo em nome do qual ela agia e o inverso é igualmente e por demais verdadeiro.
Eu falo ( escrevo ) por mim e em meu próprio nome e não me parece que a verdade toda esteja de um só lado o que equivaleria a negar, pelo seu esvaziamento que em relação a cada um de nós se reporta e nem de outra maneira elas fariam sentido, tanto a Democracia como a Liberdade.
Poderia continuar e continuaremos, seguramente e como me escreve, a refletir mas estes são os pressupostos de uma saudável discussão que vá para além do abstrato e da retórica estéril.
Obrigado pelas boas férias que me deseja e que Lhe retribuo, com um tão fraternal abraço como aquele que me expressa
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 23 de Agosto de 2013
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