quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CARTA AO PAPA FRANCISCO






Santidade,

A propósito das Suas declarações feitas no avião a caminho das Filipinas e, depois, na viagem de regresso a Casa, é com veemência que Vos interpelo.
Antes de mais importa dizer que essas declarações, longe de constituírem dogmática são apenas as Sua opiniões que a ninguém mais comprometem do que ao Santo Padre e que delas, liminarmente, me distancio.
Depois, importa ainda dizer que mesmo assim, as opiniões do Papa, para lá do ascendente global que sempre têm não deixam de ser as fortíssimas opiniões do Sumo Pontífice e, logo e também, do Chefe de Estado do Vaticano, opiniões que, por isso mesmo e quer queiramos quer não, têm implicações políticas globais pelo que não devem passar em branco.
Pese embora seja católico apostólico romano ou talvez por isso mesmo, ao encontro da máxima « não tenhais medo » e quebrando o meu silêncio, contra elas não posso, portanto, deixar de me insurgir.
Depois de no recato da minha correspondência particular ter desenvolvido com um leque amplo de destinatários mais ou menos institucionais o que agora, sistematizado, aqui Vos deixo e também norteado pelo silêncio dominante e sintomático destes últimos, decidi ter chegado a hora de Vos escrever esta carta na esperança de que Vos venha a chegar às mãos.
Perdoar-me-eis a extensão do que aqui se segue e que em simultâneo, não apenas publiquei no meu blogue como para a caixa de correspondência do facebook da Santa Sé enviei.

Santo Padre, Eminência,

1 – Quando se condena algo tão execrável como o terror cometido contra o hebdomadário Charlie Hebdo, não se pode cair em ambiguidades ou meias palavras.
Ou se condena e ponto ou se nos pomos com « mas » como aquele em que Vossa Eminência caiu, pura e simplesmente, desculpabiliza-se, isso sim, o inominável.
Não me espanta que o tenha feito, confesso-Lhe uma vez que a Igreja tem, ela própria, uma enorme dificuldade em, perante a sátira e não só, conviver com fairplay.
Quantos daqueles que empunharam o singelo cartaz do JE  SUIS / CHARLIE, sendo católicos, noutras ocasiões não se terão erguido indignados com caricaturas de igual teor mas visando, hélas, a Vossa pessoa.
E como a própria Igreja, institucionalmente, nessas ocasiões, não reagiu?
O humor não conhece baias sob pena de se transformar em politics ou noutra coisa qualquer, em tudo menos humor.
Assim, seguramente que o humor condensa em si próprio o paradigma da liberdade de expressão e, portanto, não espanta nada que por ela todos os amantes das liberdades entre os quais, também e sem sofismas, me incluo, se tenham erguido como se ergueram.
Basta de meias palavras e deixai o humor correr livre e à solta que para tudo o mais existe ou deveria como tem de existir a regulação própria do Estado de Direito.
A liberdade de expressão ou existe ou não existe, ponto final parágrafo.

2 - Dou-Lhe um exemplo de fairplay e que uma outra caricatura que segue abaixo e que foi publicada num site de um amigo meu, me suscitou:



Claro que não apreciei o cartoon em causa nem teria de o apreciar, essa é outra vantagem singularíssima da liberdade de expressão que consiste, no fundo, em dizer que há gostos para tudo e que ninguém, como se condicionado por uma padronização ou pensamento únicos, se sentisse obrigado a gostar.
Não lhe apus, por isso mesmo, um like mas na caixa de comentários, deste modo repliquei:
- De Dieu parce que je suis le maître de moi-même! Ok?
Esse meu amigo, demonstrando igual desportivismo, dando provas expressas disso mesmo, ao meu comentário e com igual desportivismo reagiu e à sua reação, então sim, apus-lhe um like.
Deus, por outro lado e sem pretender, abusivamente, falar em Seu nome, também não terá ficado desagradado, na constatação de que há quem saiba não depender Dele para tudo e para nada.
A esta minha forma de proceder, aliás, chama-se dar a outra face, expressão que não pode ser interpretada literalmente antes sim que à agressividade, por exemplo, não se responde com agressividade ou à coação com igual coação física ou psicológica, se insultassem a minha mãe eu não devolveria o insulto com um soco e se o fizesse não a redimiria por tal, muito antes pelo contrário mas, isso sim, ignorando-os ou extirpando a agressividade e neutralizando-a com uma réplica ou reação de sinal mais ( + ).
Deus ri-se, rebola-se a rir que Dele riam, façam chacota ou gato-sapato, chora, não tenho a mínima dúvida, sempre que a nós próprios, voluntária, intencional, escusadamente, nos martirizemos ou façamos mal.

3 - Já o afirmei amiúde que Vossa Santidade até poderia ir dormir, não para a Casa de Santa Marta recusando os requintados aposentos papais mas para debaixo de uma ponte que não será por isso que se livrará dos fundamentalismos que se encrustam no interior da Igreja.
Não terão sido, aliás, casuísticas as Suas infelizes declarações a caminho das Filipinas, país deles, desses fundamentalismos, encrustado, como logo se comprovam nas manifestações literalmente crucifixais por altura da Páscoa a lembrar outras idênticas por ocasião de algumas festividades muçulmanas em que os crentes, pelo chicote autoinfligindo-se, igualmente se martirizam.
Não, Vossa Santidade terá de ir muito mais longe do que isso porque o que está em causa, para além do aparato da humildade que desencadeou, no seu cerne, contudo, é da ordem doutrinal, sob pena de a simbólica que projeta se reduzir ou não passar de mero populismo.
smile emoticÀÀÀ luz da fé, as manifestações crucifixais nas Filipinas referidas acima, hélas, constituem, de facto e essas sim porque replicantes do próprio Sacrifício, blasfémia, uma vez que Cristo foi crucificado com esse gesto libertando a Humanidade e para que mais ninguém o viesse a ser, sendo certo que a Igreja com tais práticas contemporiza!
À luz de Fátima, por seu turno e já agora, as caminhadas sacrificiais de joelhos, ainda assim, estão-lhes a um patamarzito de distância o qual permite uma certa contemporização mas sempre, devia-o ser mas não é (!), acompanhadas de condenatória e institucional dissuasão, uma vez que vermo-nos livres da crendice é muito difícil senão mesmo impossível e mais vale tê-la ao abrigo do guarda-chuva da Igreja ou das igrejas do que descontrolada e à solta.

4 - A Igreja corre o risco de perder o enfoque e, logo, o pé.
Em nome do ecumenismo e do diálogo inter-religioso que a leva a temer ferir sensibilidades, não pode ficar refém dos fundamentalismos e, logo, a começar por aqueles que no seu seio espreitam apenas por uma oportunidade ao arrepio, aliás, de tudo o que almejou.
E se, para variar, o Papa exercesse do rigor em relação ao inominável e da flexibilidade e do fairplay em relação às liberdades e aos costumes, temporalidades em relação às quais, aliás, pura e simplesmente e quantas vezes concupiscente, não se deveria intrometer?
É que, convenhamos, se teoria é teoria e a prática outra coisa, que a humanidade, como o diz, se restrinja, então, àquilo que deve e não o contrário o que, aliás, até o Seu tresmalhado rebanho e esta Sua ovelha, em particular, muito Lhe agradeceriam.

5 - Exemplifiquemos de forma crua e nua, os macaquinhos no sótão dos quais a Igreja tarda em se livrar, despojando, por um momento que o seja, a Sagrada Família da narrativa mística que a sacraliza:
Há lá família mais desestruturada!
Maria, virgem mas dando à luz um filho, paradoxo nos termos;
Cristo, filho de um pai incógnito;
José, um padrasto distanciado;
Uma família a roçar, portanto, a monoparentalidade;
Cristo, de novo, circulando pelas margens da sociedade de então e acabando preso e julgado pela justiça da época, condenado à morte e crucificado, a pior e mais ignóbil das condenações a sofrer, na presunção herética reveladora do tremendo complexo de Édipo de se presumir filho de deus, o próprio imperador, portanto, à época o único deus vivo que Cristo se encarregou, Ele próprio, de dessacralizar declarando-o, ao imperador, entenda-se, acessível à cidadania universal ao sublinhar que por Sua via, por via do Seu Sacrifício, todos seriamos finalmente libertados, a todos nos concedendo não apenas soberania mas a hipótese esperançosa e democrática, soberana do poder que hoje, mais do que nunca, se impõe;
Mais paradoxal ainda, filho de um Outro deus?
Loucura, insanidade, subversão total!
Mas ao se despojar assim a Sagrada Família, ela remete para os nossos dias na sua plena, acutilante atualidade e para os desafios que atravessam a modernidade:
Antes de mais o da centralidade do amor, logo, da lateralidade dos géneros na manifestação da sexualidade enquanto sua expressão singular para lá, muito para lá da reprodutividade, tout court;
Das novas formas de organização familiar;
Da inseminação artificial;
Da clonagem, já que ele próprio, Cristo igual a Deus;
Do poder ao alcance de todos, de cada um de nós no exercício da nossa singular e perseverante cidadania;
Etc., etc., etc.
Não, a Sagrada Família tem tudo menos do suposto padrão tradicional de família e despojada assim e nas tremendas questões ditas fraturantes, ditas porque o não são que levanta, apenas Vós insistis em que como tal se eternizem, o Mistério reabre-se em todo o seu esplendor e tanto mais quanto vindo de tão recuado no tempo, até nós sobreviveu.

6 - Ecumenismo e diálogo inter-religioso fazem todo o sentido, urgem mesmo, mas para que eles sejam profícuos para todos ninguém pode perder a sua identidade, no respeito e na sã convivência com a laicidade e na completa abertura aos agnósticos como aos ateus, e têm de ser precedidos, antes de mais, pela própria evangelização da Igreja tão em défice, ela sim, Igreja, campo fértil para a Evangelização e desde que levada a cabo neste espírito completo de abertura.
Crentes e não crentes ou a razão de Fé e a fé na razão podem e devem convergir, no meu modesto entendimento eis a grande aproximação a fazer e em direção à qual as agulhas deveriam ser assestadas, não paro, aliás, de diligenciar nesse sentido até porque o próprio terror, não gosto da palavra terrorismo que faz lembrar outros tempos e conotações, os anglo-saxónicos são nisso, regra geral, muito mais assertivos do que os latinos, o próprio terror, escrevia, joga com esses dois pesos pesados e centrais da modernidade, esses sim complementares, para os apartar, dividir e virar um contra o outro.
É neles, isso sim, que a Igreja deve por o seu enfoque e dos quais dependerá a sua própria revitalização, sobretudo, sem cair na tentação de invocar em vão o Santo Nome como se numa permanente crise de Fé em que, quantas vezes, Ela parece, penosamente, arrastar-se e que mais não revela do que o medo da própria Liberdade.
Porque Deus está em todo o lado e em cada palavra que se diz ou não fora Ele Verbo no princípio.



Santidade,

Termino por onde comecei, agora repegando a palavra de ordem JE  SUIS / CHARLIE:
Já reparou na similitude imagética, coincidência ou não, entre JE/SUIS, mais a mais quase pegados e JESUS ou JÉSUS em francês qual Charlie = Jesus do século XXI?
Ironias da História:
Um dos símbolos da irreverência livre, porque a Liberdade, repito, por natureza a implica, sacrificado no altar dos fundamentalismos radicais!
É que o que escrevi antes remete para a própria consciência da Igreja na sua falta de fairplay, sempre o fairplay, em conviver com a irreverência máxima, isto é, livre.
Não, esta palavra de ordem, JE SUIS CHARLIE, subliminarmente e no grafismo em que surge formatada, é tudo menos inócua ou delicodoce como alguns sugerem e, objetivamente, interpela-Vos diretamente!
E se a Igreja se livrasse da tralha colocando as cartas em cima da mesa sem quaisquer subterfúgios, por paradoxal que possa parecer, estou certo que veria o terreno desarmadilhado livrando-se da desconfiança que gera, historicamente justifica-se, a evangelização é sempre olhada pelas outras religiões com justificada desconfiança, então sim, repito, veria o terreno desarmadilhado e aplainado quer para o ecumenismo como para o ingente aprofundamento do diálogo inter-religioso.

Com a humildade bastante, Vosso





se tudo tem pés de barro, antes um barro seco e não molhado ainda por moldar uma vez que se moldados já fomos, eis o que nos distingue da barbárie, antes quebrar que torcer








Jaime Latino Ferreira

Estoril, 28 de Janeiro de 2015



5 comentários:

ki.ti disse...

eu também pensei em fazer um cachecol este inverno, mas como o tempo aqueceu, desisti


manuela baptista disse...

muito bem!

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e agora, Francisco?

. intemporal . disse...

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. uma carta . que fala por si . que por Si fala . jaime . que fala por nós .

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. abraço.O .

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Kika disse...

Kriu?

A liberdade não termina onde começa a religião para que a religião nunca termine para que possa haver liberdade!

Há caminhos que se percorrem de mãos dadas, pois há!

Kriu?

Anónimo disse...

Eu sou católico e não procrio...

Aguardo que desandem os coelhos!