Júlio Pomar, O Almoço do Trolha, 1947
I
A Sagrada Família não
continha nada de tradicional ou costumeiro e, por isso mesmo, se escondeu numa
manjedoura para fugir ao decreto do Rei
Herodes que teria mandado matar todos os nascituros por medo de vir a
perder o seu trono para o profetizado rei dos judeus.
Clandestinamente ela se
cumpriu obedecendo a todos os requisitos que, hoje, poderiam corresponder
àquilo a que, prosaicamente e é dizer pouco, se chama uma família nada
convencional.
II
Confundir família não
convencional com família desestruturada constitui um grave equívoco.
Ele há famílias nada
convencionais unidas pelos mais fortes elos do amor como há famílias
convencionais que, desestruturadas, assentam no exercício das maiores
arbitrariedades.
Outro equívoco consiste na
ideia de género que assentaria, por oposição a fragilidade, na força física e
não naquela que, em pé de igualdade, os faz comungar no amor.
Destes equívocos os
maiores impasses persistem em prejuízo daquilo que sendo durável, perene, é
fundamental, a saber:
Não há família sem amor e
o resto é retórica e manobras dilatórias!
III
Manobras dilatórias, de
dilatório ou daquilo que se faz por adiar.
Adiar pode ser uma atitude
inteligente quando, por exemplo, se relacione com a gestão política de uma
situação delicada que envolva muitas sensibilidades e onde não se torne claro o
sentido para que elas pendam, sobretudo, perante assuntos como aqueles dos
costumes e das novas formas de organização familiar que, por isso mesmo, se
tomam por fraturantes.
Assim, em nome da unidade
se adiam clarificações.
Mas chega sempre uma
altura em que adiar faz inverterem-se os termos da própria equação enunciada
atrás.
Assim, nada garante que
por persistir-se na ambiguidade que o protelamento suscita, o que se quereria, à outrance, manter unido,
afinal, não se frature ainda mais, definhe ou se estiole mesmo e, sobretudo, quando o
persistente adiamento que se quereria tomar por impoluto mas que não passa de
um teimosa renitência que nada tem a ver com princípios, faz recair sobre si
mesmo as mais avassaladoras das suspeições.
Ambíguo?
Para quem saiba ler.
IV
Pretender à viva força
manter unido aquilo que, ainda que em prejuízo dos princípios, como o azeite e
o vinagre não se mistura, pode ser uma receita que produz os piores dos
resultados.
Essa receita, embora
mantendo à tona o azeite, a verdade ou o unguento purificador acaba por não
neutralizar, no fundo e pela calada, a persistente acidez que os corrói e se
despoleta, o mal viver consigo próprio em tudo contrário ao bem viver, ele sim,
eixo axial e força motriz da disponibilidade e do amor que se têm a ver com a
castidade lato senso considerada não se confundem com qualquer normativo
castrador.
Não se estando bem consigo
próprio, como se poderá estar bem com os outros?
A verdade é como o azeite,
acusando a acidez vem sempre ao de cima.
nota: a castidade é um lugar sagrado e íntimo,
indeterminado em cada um de nós que nos mantém íntegros.
V
Eu amo-te, que quer dizer
isto?
Tal significa que no
absoluto respeito pelo Outro, maior e igual, o que implica o não anulamento de
um pelo outro, seja ele quem for, na fidelidade, com ele se quer partilhar
tudo, os bons como os maus momentos da vida.
Significa estar disponível
para o Outro e, ao está-lo, para todos os outros também se ficar disponível.
Quem sou eu, quem é o
Outro?
Teremos de obedecer a um
perfil ou a uma morfologia específicos?
Ou o Outro é tudo o que
nele a mim me completa para lá de todas as nuances físicas?
O Outro, nele incluída a
sua dimensão metafísica.
O Outro e eu não somos nem
simples apêndices ou encaixes, nem meros sistemas reprodutores, somos muito
mais do que isso.
Somos criatividade latente
que de um no outro dá à luz.
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Dezembro de 2012