sábado, 30 de novembro de 2013

SENTIR

Luchino Visconti, Senso, 1954







Calem-se
que falo eu
quem mora aqui
não morreu
diz-me a vontade
e a alma
que com o tempo
cresceu

Calo-me
que escrevo eu
junto às forças que me restam
saber que não esmoreceu
diz-me o que escrevo
na música
que por aqui
renasceu

Ouve-me
que a mim o deu
o que na minha escrita
espanta o que escureceu
o que ilumina a passagem
estreita margem do meu eu
o que permite a viagem
que nos faz olhar o céu

Oiço-te
o digo eu
há uma esperança
que nasceu
sem sonho
murcha enfadonho
o teu sentir
e o meu





na penumbra das horas difíceis, do que faço por sentir







Jaime Latino Ferreira

Estoril, 30 de Novembro de 2013



domingo, 24 de novembro de 2013

O QUE É A NOTÍCIA

contornos






Na sociedade mediática a notícia nunca é a notícia mas sim um apontamento da notícia.
Resultado:
Amputada da notícia dela sobreleva o apontamento, a espuma, o que dela fica pela rama sem o seu conteúdo ou enchimento.
A notícia é como a onda sem maré.
A notícia acaba, assim, por ser apenas os seus contornos que se amplificam à exaustão.
Amplificados, os seus contornos fazem a notícia depauperados, esvaídos do conteúdo que à notícia a insinua.
Sendo a notícia o apontamento que dela sobreleva amputando a realidade esta, esventrada e contorcida pela notícia, desfigura-se e projetada como notícia, à notícia se impõe e a empobrece.
À realidade a desfigura.
Desfigurada porque deslaçada pela notícia, a realidade consome-se e fica reduzida à sua mínima expressão.
A notícia, despida da notícia, fica a notícia que a não sendo passa a ser.
E resumida a realidade a apontamentos desconexos do real, a notícia, com a velocidade que em mantas de retalho se projeta, num ápice deixa de a ser.
À velocidade a que a notícia se quer projetada, acaba por à realidade, distorcendo-a, a moldar.

O que é a notícia.
O que seria desta notícia, pequena nota ou ensaio, sem a vaga de fundo que nesta plataforma ou no facebook se disponibiliza e que até ela aqui me trouxe?





a notícia é a notícia da notícia








Jaime Latino Ferreira

Estoril, 24 de Novembro de 2013



terça-feira, 19 de novembro de 2013

JUSTIFICAÇÃO

Aleksandr Sokurov, fotografia do filme Mother and Son de 1997






Tenho andado a reunir forças.
A esgravatá-las nos confins de mim mesmo.
Porquê?
Porque a minha mãe se encontra doente, internada vai para duas semanas depois de o seu estado geral se ter vindo abaixo após uma intervenção programada para a colocação de uma prótese na sua anca esquerda, cirurgia que, em si mesma, foi realizada com sucesso.
A minha mãe tem quase 88 anos de idade.
Mais dia, menos dia ser-lhe-á dada alta e espera-a uma longa recuperação em casa, é esse o nosso desejo à medida, também, das nossas possibilidades que julgamos estarem à altura de a enfrentar.

Tenho andado a reunir forças tal como à minha mãe também lhe digo, a isso sempre nos habituou, que pela sua parte e na medida das suas possibilidades, também as terá de reunir.
Do processo em que me encontro mergulhado, aquele de reunir forças impõe-se, finalmente, esta justificação.
De repente, parece que o mundo se cinge a esta nossa preocupação maior.
À vida que vidas deu e outras continua a dar.
À importância soberana que a vida entre nós adquiriu.
E penso nas desgraças que abalam o mundo, em particular, na catástrofe que varreu as Filipinas e quão aflitivamente desesperados estarão aqueles que a ela sobreviveram.
Penso e dou graças, em suma, de quão protegida, não apenas por fatores climatéricos favoráveis, ainda é e apesar de tudo a vida humana entre nós.

Tenho andado a reunir forças.
Forças que cheguem para minha mãe, para os meus e para vós que me ledes.
Sei da responsabilidade que perante vós criei.
Não é em vão que convosco comunico mas temo que a minha assiduidade, por força das circunstâncias, tenha de adquirir um outro e mais espaçado ritmo.

Tenho andado a reunir forças e enquanto as reúno, exalto minha mãe.

Mãe
não é em vão que nos tem
pois o amor que nos deu
a Si ao nosso o concedeu

Porquê falar-vos do que me atormenta?
Porque é fundamental para continuar.
Como, não sei mas continuarei.




aos meus leitores tanto daqui como dali







Jaime Latino Ferreira

Estoril, 19 de Novembro de 2013



quarta-feira, 13 de novembro de 2013

ATO DE CRIAÇÃO

Paula Rego, Natividade







Tal como na gestação e no ato de parir há, na sua génese e no ato de criação artístico, com os primeiros, vincadas similitudes.
Em ambos os casos de nós se desprende um ângulo ímpar que conhece a luz do dia e ganha autonomia e esse ato não é nem inócuo, nem indolor, nem pacífico.
Sendo um ângulo ímpar que de nós mesmos se desprende e aos outros se oferece, o ato de criação artístico disponibiliza o que antes dele não estava acessível.
É um ato que acrescenta tal como, igualmente, uma nova vida que nasce mais ainda acrescenta.
Com ele vê-se o que antes dele não se antevia e o que se vê soma valor.
Somatiza ou procria e faz-se, ele também, acompanhar de sintomas psicossomáticos em muito idênticos aos daqueles associados ao ato de parir e a tudo o que na sua gestação já o precede e prepara.
Vertigem, estado de graça, náusea e quantas vezes dor, não tanto física mas psíquica e que a ambos os acompanham.

O ato de criar tal como aquele de parir, o de dar à luz não é gratuito.
Ambos saem da pele e são cobrados.
Realizam, é certo.
O ato de criar, tal como para a mãe o filho que nasce, é aquele de, a ele somando-se-lhe toda a sua génese, dar à luz o filho do artista.
O que pelo ato de criar ou de, melhor dizendo, recriar conhece, por fim, a luz do dia desapegando-se do artista, no entanto, vincula-o.
Tal como uma filha ou um filho aos pais, sobremaneira, também os vincula.
E o que pelo ato de criar ou de parir é concebido, tanto num como no outro caso, replica-se, reproduz-se aos olhos de quem os admira.
Ganha vida própria e floresce.
Na sua exposição o ato de criar alimenta-se, engrandece-se, robustece-se.

O ato de criar tem uma religiosidade muito própria:
O ato de criar é uma metafórica parição e nessa parição há uma aparição que se desencadeia.
É um do nada ser que tudo é.
O ato de criar é uma desfloração tão imaculada quanto a mais casta das fecundidades.
O ato de criar é como ter um filho fazendo-o sem o ter feito porque ele já se anunciava e aquilo que dele resulta, porque é da Obra de Arte que escrevo e tal como a vida, ganha a eternidade.
Entre esta e aquela outra Eternidade não há assim uma tão grande diferença.
Ou se merecem e se contemplam ou da contemplação, o ato de criar, não o sendo, dela não é merecedor.




no ato de criação a génese da vida







Jaime Latino Ferreira

Estoril, 13 de Novembro de 2013



domingo, 10 de novembro de 2013

ELIXIR

Sandro Botticelli, o Nascimento de Vénus, 1482–1486

( a emersão do feminino em nós )






É do divórcio entre o amor e o sexo, exponenciado pelo fosso que se cava entre as instâncias civis, públicas ou temporais e as religiosas ou intemporais que em asfixiamentos e indefinições crescentes resultantes das suas políticas restritivas, castradoras e que a ambas, por vias distintas, nas sociedades abertas e modernas as caracterizam que se constata, em crescendo, a acentuada quebra de natalidade que aos equilíbrios sociais os ameaçam, irreversivelmente, de subverter.
Políticas restritivas das instâncias intemporais pelo protelamento que às suas indecisões, nas ambiguidades que as perpassam, as minam porque se arrastam no tempo;
Políticas restritivas das instâncias temporais, pelas medidas anti-natalidade que por múltiplas razões as constrangem e obrigam.
Estrangulamentos restritivos.
Enquanto não se quebrar este fosso, não a indispensável separação de poderes que os delimitam mas este fosso, as sociedades modernas e livres continuarão a patinar entre a abertura e o retrocesso civilizacional.
Chegou o tempo das grandes e inadiáveis decisões na radicalidade que com a Liberdade se confunde.
Nos seus respetivos planos e dimensões, a ambas as fontes de poder lhes falta o elixir doutrinário que estando aqui presente mas não devidamente reconhecido, as anime, catalise e soberanamente as inspire.
A não ser assim, exangues, ambas as fontes de poder definharão e depois?




desde que no respeito pela pessoa humana, a soberania das sexualidades é o afrodisíaco da criatividade e, logo, da natalidade



remate de:








Jaime Latino Ferreira

Estoril, 10 de Novembro de 2013



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

ORTODOXIA E CONVENIÊNCIA

Michelangelo Buonarroti, Capela Sistina, Adão e Eva

 ( radicalidade é um ela, um Outro e um eu ser )






Ou bem que há coisas que fazem parte da ortodoxia, sublinho, da ortodoxia, da teimosia ou da intransigência, não da dogmática católica que é outra coisa ou, pura e simplesmente, elas apenas fazem parte da conveniência resultante de circunstancialismos históricos ou outros.
Daquilo a que chamarei a política da Igreja que a tem.
Se fazem parte da ortodoxia no sentido daquilo em que não se transige, então, para quê um inquérito tendo em vista medir o pulso dos fiéis em relação àqueles que se consideram ou se insiste em considerar serem temas fraturantes nas sociedades abertas e modernas dando, implicitamente e quer se queira como não, por essa via, por via do anúncio desse inquérito, um sinal.
Um sinal que, convenhamos, não deixa de ser tanto sintomático como louvável.
Que sinal é esse?
O sinal de que a ortodoxia é-o até deixar de o ser porque se a fosse mesmo ao ponto de se confundir com a dogmática não se justificaria qualquer inquérito qual sondagem de opinião.
Com o anúncio de um tal inquérito, institucionalmente, a Igreja está, implicitamente, a responder ao que ela própria através do inquérito, de antemão, já anuncia:
A Igreja e independentemente dos resultados que venham a ser coligidos e trabalhados por via do próprio inquérito, está a sinalizar que tais temas, longe de se inscreverem em qualquer dogmática do catolicismo nas atitudes que em relação a eles tem manifestado, correspondem tão só a conveniências nelas incluídas as resistências, os grãos na engrenagem ou não se justificaria um inquérito ou sondagem, qual simples organização política, que em si mesmo vêm por em causa essa mesma e empedernida ortodoxia, leia-se intransigência da sua própria práxis até aqui dominante, sempre e por demais institucionalmente conservadora.
Se assim é, se o que está em causa logo aos olhos institucionais da Igreja é esse seu empedernido e teimoso conservadorismo que durante tanto tempo justificou, inclusive, a sua suposta durabilidade através dos séculos enquanto instituição milenar que é não cedendo à espuma dos dias, então, para quê prevalecer em tacticismos que apenas põem em causa a tão propalada radicalidade de que esta se julga, em simultâneo, detentora?
Com o inquérito, por ora, anunciado, se é certo que a Igreja dá o flanco, não menos certo é que o tacticismo continua a prevalecer e como eu gosto das coisas preto no branco no multicolor do real, por antecipação, com o meu texto anterior, a ele resolvi, atalhando, responder de pronto sem me deixar, tão pouco, condicionar por um qualquer questionário que, em si mesmo, sempre influencia, limita ou constrange as respostas que se venham ou possam vir a dar.
Com todos os riscos inerentes, julgo, a Igreja teria tudo a ganhar se tomasse a dianteira ou se se constituísse, finalmente, em reserva estratégica da intemporalidade e se deixasse de se intrometer nos hábitos e costumes ou na estrita moralidade o que apenas conspurca a natureza da própria religião introduzindo-lhe imprópria e ruidosa temporalidade, quanta lhe não foi introduzida ao longo dos séculos, agarrando decidida a humildade e a abertura, a humanidade, a radicalidade da caridade que, por isso mesmo, se quer e se diz cristã.
Sim, a Igreja ou se fecha ou se abre deitando para trás o que é de um mesquinho antanho e entre uma e a outra coisa a margem de manobra, à palma da ambiguidade que teima em insinuar-se, vai-se estreitando cada vez mais.
Ortodoxia e conveniência.
Serão elas as duas faces de uma mesma moeda?
Esperemos para ver.





amar é ser livre e na liberdade me escudo sendo que há coisas que são ou não são e, para mim, são como são sem que sobre elas seja necessário medir o pulso








Jaime Latino Ferreira

Estoril, 8 de Novembro de 2013



terça-feira, 5 de novembro de 2013

O AMOR TEM TODOS OS SEXOS

Michelangelo Buonarroti, Capela Sistina, Adão e Eva

( qualquer um se pode rever em qualquer deles ou em ambos ou nos três, isto, se ao artista, um deus menor a Adão e Eva o somarmos ou ainda e como noutra ocasião o escrevi, que importa se foi da costela de Adão que nasceu Eva pois se foi da mulher que nasceu o filho de Deus )







O amor não tem sexo ou, melhor dizendo, tem todos os sexos.
Do mesmo modo, o sexo se o pode não ter, pode conter todo o amor.
Independentemente dos sexos envolvidos, estes podem como não conduzir ao primeiro, ao amor.
Já agora, não é, necessariamente, pelo sexo que o amor se amesquinha.
Pelo contrário, por ele, pelo sexo, quantas vezes o amor não se pode antes lubrificar, exercitar-se mesmo.
Quantas vezes, numa primeira relação, ele, o amor, pura e simplesmente não resulta ou é votado ao mais clamoroso dos fracassos?
E pese embora, será que o amor, pelo sexo, se conspurca?
A tão propalada virtuosidade, leia-se virgindade, é daquelas coisas que até quem venda o seu sexo, em si mesmo, pode, num lugar íntimo e reservado de si próprio, resguardar.

Entre o sexo e o amor há um estreito caminho de realização, assim as partes prevaleçam no que ao amor é fundamental:
A dignidade que uma pela outra das partes devem, têm de salvaguardar e tanto mais quanto há sempre terceiras partes envolvidas e que a esse mesma dignidade, umas pelas outras, mais ainda se devem.
Sexo e amor não são incompatíveis antes complementares entre si.
Assim se salvaguarde, entre um e o outro, o que é essencial:
O respeito pela pessoa humana, isto é, pela sua sacralidade ou virgindade, fidelidade intrínseca o que é outra coisa que não a virgindade literal, respeito que cada qual, antes de mais, a si próprio pelo outro se obriga.

O amor tem todos ou nenhum dos sexos, por todos eles passa e todos os sexos contêm, em si mesmos, todos os sexos no assexual amor que em comum todos partilham.
Neles como em terceiras partes, o amor se realiza.
Porque no amor há sempre terceiras partes, sagradas triangulações por ele, na relação, envolvidas.
Tanto por via direta como indireta, reprodutiva ou não.
Assim todos se devam ao respeito coisa que nada tem a ver com especificidades de género.
Tem, isso sim, a ver com uma ancestral e arreigada cultura de guerra ou com a desejável e promissora Cultura da Paz.
A Cultura da Paz ou está presente ou não e é independente do sexo que uma e outra ou todas as partes ostentem.

O amor não é nem feminino, nem masculino, é neutro.
É de uma neutralidade transcendente porque para lá dos sexos mas entre eles interativa.
Transcende os sexos e estando ao alcance de todos eles, em todos se realiza.
O amor não conhece fronteiras e tem no sexo a sua ferramenta por excelência de intervenção.
O amor que pelo sexo, direta ou indiretamente, se consubstancia está ao alcance de todos que por todos os sexos intervém como não.
Sendo o amor mais forte do que todos os sexos, o resto é conversa fiada.

Escreve quem crê e que não se insinue relativismo porque o que aqui escrevo, se dele, do relativismo, se aproxima, em tudo do fundamentalismo castrador e sem deixar ambiguidades pendentes o ultrapassa jogando decisivamente no futuro porque adensando a própria natureza do Mistério.




em manifesta e patente incapacidade em lidar com o sexo, há quem tenha dele uma visão envergonhada, insegura e paradoxalmente concupiscente, exatamente porque envergonhada, que depois transfere em permanente contrição extasiada para as figuras, de um como do outro sexo, postas e idolatradas no altar







Jaime Latino Ferreira

Estoril, 5 de Novembro de 2013



sábado, 2 de novembro de 2013

SE PARASSE DE ESCREVER

George Frederic Watts, Hope, 1886








E se eu parasse de escrever?
Deixaria de existir?
Perder-se-ia tudo o que até aqui e do porquê do que escrevi?
Será que tudo o que até aqui escrevi deixaria de fazer sentido?
Tornar-se-ia irrelevante?

Estas são interrogações que me fazem, com denodo, prosseguir na escrita.
Como se uma réstia de esperança, pela interrupção da escrita, se esvaísse.
Esfumasse de vez.

Réstia de esperança.
Esperança em quê?
Em que a força da palavra prevaleça, em tempo de vida útil, sobre a palavra da força.

A força da palavra sobre a palavra da força.
A que me refiro eu?
Refiro-me à força, ao poder congruente das convicções expressas independentemente da palavra do poder, da força.
Do peso da sua expressão pública.
Da expressão pública ou da força de mandatos, da adesão que ela, a palavra suscite num determinado momento na certeza, contudo, que ela, a força da palavra não atropele, viole ou esmague essa mesma força de mandatos ou adesão públicos e refutando inevitabilidades.
Que não viole as regras do jogo democrático o que pressupõe, sublinho, a força que ela, a palavra, em Democracia, de per si, possa e deva ter.

A força da palavra.
Aquela que deriva, tão só, da argumentação despendida em que a Democracia, tão esquecida, maltratada ou subvertida que é esta sua outra face, assenta.

E se eu parasse de escrever?
Que seria da luminosidade em que circulo?
Se eu parasse de escrever o que seria de mim?

se deixasse de escrever
a vontade ditaria
não deixes esmorecer
o que te dá fantasia

E fantasio.
Impenitente, fantasio que a força da palavra prevalecerá sobre a palavra da força.
Que esta, a palavra, não se limita a ser um mero fator estatístico a ter relevância em função do seu peso aritmético.
E nesse subtil, evanescente recanto me aninho, resguardo e persevero.




como ato libertador de criação, escrever é viver






Jaime Latino Ferreira

Estoril, 2 de Novembro de 2013