Cassandra Lima, Tortura Nunca Mais, Recife
Antes de mais nada, vou aqui utilizar a palavra normalidade cedendo ao politicamente incorreto que nela vê o que se entende por norma padrão e tendo em vista o reforço da normalidade democrática ou do regular funcionamento das instituições democráticas sabendo que normalidade, bem vistas as coisas … não existe.
Para que conste!
Procuram-se sempre situações limite, fora da normalidade (!), para exaltá-las como exemplos paradigmáticos, bombásticos ou dignos de nota.
Daí se poderá concluir que todas aquelas outras situações que fujam a esse padrão, refiro-me ao contexto de qualquer cidadão comum sem nada de aparentemente notável que se lhe possa assinalar, se incluirão num limbo de registo despiciendo, digno de um anonimato insuscetível de referência.
Deste modo, essa imensa maioria anónima estaria sempre fora de qualquer consideração digna de registo uma vez que não se incluiria naquele outro de uma qualquer excecionalidade.
Assim, a normalidade democrática tem destas coisas profundamente perversas ou … antidemocráticas:
É que as maiorias que elegem e depõem, senão para esse efeito, não são dignas de constar!
Façamos, então, o elogio da normalidade:
Que maior normalidade não atinge qualquer criança do sexo masculino quando da sua mudança de voz?
E que irrelevância em saber-se quanto nela, na sua voz infantil, de anjo como soe dizer-se, essa criança apostaria ao ponto de interrogada sobre o que no futuro desejaria ser, por pudor e na consciência do ridículo de tal afirmação, se escusava a confessá-lo tanto mais quanto em adulto desejaria ser pequeno cantor!?
E quanto nela, nessa sua voz, essa criança, investia …!?
E quanto, por fim, sofreu, quando na adolescência, tirando-lha Deus democraticamente como aos outros, se viu atirado para uma reforma mais do que antecipada e compulsiva!?
Foi Deus … teria mesmo sido Deus!?
Que maior normalidade do que, tendo em jovem adulto sido radical roçando as margens, todas as margens, deixar de o ser na maturidade entretanto adquirida?
Ao ponto de, tendo abraçado, utópico, esses radicalismos, refugiando-se em microcosmos só por ele visto como inteiros, únicos, íntegros, ser apanhado, surpreso, abismado mesmo, pelo sentimento de se sentir atraiçoado vendo, de um momento para o outro, desmoronar-se todo um mundo em que vivia e sem qualquer possibilidade de recurso!?
E tendo, mais a mais, sido capaz de resolver esse sentimento ao ponto de desculpar aqueles por quem se tinha sentido atraiçoado!?
Atraiçoado, primeiro pela sua própria voz, depois, pelos seus pares e ainda, mais tarde ainda, pelo seu próprio corpo!?
Que maior normalidade, na sua busca subconsciente pela vocação perdida, do que reencontrar-se com Deus na constatação de quão ecuménica é essa palavra quando escrita em português? E ver vertida, reencontrada a sua vocação, da voz falada em derrame escrito, como se num cantar surdo renascesse!?
E sentir-se subir aos píncaros e descer aos abismos, abusando de si mesmo na revelação duma bipolaridade com que se teve, irremediavelmente, de confrontar!?
E aceitá-la e resolvê-la, estabilizando por fim na aguda consciência guardada, preservada, dos extremos, sempre presentes, que se tocam!?
Que maior normalidade do que, expondo-se pelo dote da escrita entretanto adquirido, sentir-se exilado na sua própria terra?
Dirigindo-se às mais altas instâncias julgando-se delas, apostado no aprofundamento da democracia que não se pode conseguir senão pela revisão de padrões, merecedor!?
E preservar sem tréguas e mesmo se em prejuízo da sua vida profissional e académica, remando a contracorrente!?
Anos e anos a fio numa Obra que se desdobra em mil e um cambiantes formais e temáticos, na aguda consciência de que desistir seria deixar-se fazer implodir sobre si próprio!?
Na igualmente aguda consciência de fazer desacreditar os outros em relação aos quais, deixando de cultivar o benefício da dúvida, os faria, a eles também, cair em total descrédito deixando fechar-se sobre si mesmos todas as janelas de oportunidade!?
Que maior normalidade?
Aquela de não querer dar nas vistas sem olhar a meios!?
Aquela de se rever na sua própria Obra e de achar poder esta vir a afirmar-se sem recurso a qualquer intermediação que não os suportes em que A vai escrevendo!?
Aquela de A escrever assim desde a sua eclosão, qual auto-paraquedas construído ao sabor do tempo e da escrita, amortecedor de qualquer queda!?
Sem alarde, arremessos ou convulsões de qualquer ordem!?
Que maior normalidade?
Digam-me … que maior normalidade exposta aqui e sem rodeios!?
Contra todas as formas de tortura que não são apenas aquelas capazes de infligir danos físicos ou morais!?
Uni-me, entretanto, a quem me enche o coração …
… que maior normalidade!
na salvaguarda da normalidade democrática, em tempos excecionais impõe-se-lhes o normal excecional
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 29 de Janeiro de 2012