Santidade,
A propósito das Suas
declarações feitas no avião a caminho das Filipinas
e, depois, na viagem de regresso a Casa, é com veemência que Vos interpelo.
Antes de mais importa
dizer que essas declarações, longe de constituírem dogmática são apenas as Sua
opiniões que a ninguém mais comprometem do que ao Santo Padre e que delas,
liminarmente, me distancio.
Depois, importa ainda
dizer que mesmo assim, as opiniões do Papa, para lá do ascendente global que
sempre têm não deixam de ser as fortíssimas opiniões do Sumo Pontífice e, logo
e também, do Chefe de Estado do Vaticano,
opiniões que, por isso mesmo e quer queiramos quer não, têm implicações
políticas globais pelo que não devem passar em branco.
Pese embora seja católico
apostólico romano ou talvez por isso mesmo, ao encontro da máxima « não tenhais medo » e quebrando o meu
silêncio, contra elas não posso, portanto, deixar de me insurgir.
Depois de no recato da
minha correspondência particular ter desenvolvido com um leque amplo de
destinatários mais ou menos institucionais o que agora, sistematizado, aqui Vos
deixo e também norteado pelo silêncio dominante e sintomático destes últimos,
decidi ter chegado a hora de Vos escrever esta carta na esperança de que Vos
venha a chegar às mãos.
Perdoar-me-eis a extensão
do que aqui se segue e que em simultâneo, não apenas publiquei no meu blogue
como para a caixa de correspondência do facebook
da Santa Sé enviei.
Santo Padre, Eminência,
1 – Quando se condena algo
tão execrável como o terror cometido contra o hebdomadário Charlie Hebdo, não se pode cair em ambiguidades ou meias palavras.
Ou se condena e ponto ou
se nos pomos com « mas » como aquele em
que Vossa Eminência caiu, pura e simplesmente, desculpabiliza-se, isso sim, o
inominável.
Não me espanta que o tenha
feito, confesso-Lhe uma vez que a Igreja tem, ela própria, uma enorme
dificuldade em, perante a sátira e não só, conviver com fairplay.
Quantos daqueles que
empunharam o singelo cartaz do JE SUIS / CHARLIE, sendo católicos, noutras
ocasiões não se terão erguido indignados com caricaturas de igual teor mas
visando, hélas, a Vossa pessoa.
E como a própria Igreja,
institucionalmente, nessas ocasiões, não reagiu?
O humor não conhece baias
sob pena de se transformar em politics
ou noutra coisa qualquer, em tudo menos humor.
Assim, seguramente que o
humor condensa em si próprio o paradigma da liberdade de expressão e, portanto,
não espanta nada que por ela todos os amantes das liberdades entre os quais,
também e sem sofismas, me incluo, se tenham erguido como se ergueram.
Basta de meias palavras e
deixai o humor correr livre e à solta que para tudo o mais existe ou deveria como
tem de existir a regulação própria do Estado de Direito.
A liberdade de expressão
ou existe ou não existe, ponto final parágrafo.
2 - Dou-Lhe um exemplo de fairplay e que uma outra caricatura que
segue abaixo e que foi publicada num site
de um amigo meu, me suscitou:
Claro que não apreciei o cartoon em causa nem teria de o
apreciar, essa é outra vantagem singularíssima da liberdade de expressão que
consiste, no fundo, em dizer que há gostos para tudo e que ninguém, como se
condicionado por uma padronização ou pensamento únicos, se sentisse obrigado a
gostar.
Não lhe apus, por isso
mesmo, um like mas na caixa de
comentários, deste modo repliquei:
-
De Dieu parce que je suis le maître de moi-même! Ok?
Esse meu amigo,
demonstrando igual desportivismo, dando provas expressas disso mesmo, ao meu
comentário e com igual desportivismo reagiu e à sua reação, então sim, apus-lhe
um like.
Deus, por outro lado e sem
pretender, abusivamente, falar em Seu nome, também não terá ficado desagradado,
na constatação de que há quem saiba não depender Dele para tudo e para nada.
A esta minha forma de
proceder, aliás, chama-se dar a outra face, expressão que não pode ser
interpretada literalmente antes sim que à agressividade, por exemplo, não se
responde com agressividade ou à coação com igual coação física ou psicológica,
se insultassem a minha mãe eu não devolveria o insulto com um soco e se o fizesse
não a redimiria por tal, muito antes pelo contrário mas, isso sim, ignorando-os
ou extirpando a agressividade e neutralizando-a com uma réplica ou reação de sinal
mais ( + ).
Deus ri-se, rebola-se a
rir que Dele riam, façam chacota ou gato-sapato, chora, não tenho a mínima
dúvida, sempre que a nós próprios, voluntária, intencional, escusadamente, nos
martirizemos ou façamos mal.
3 - Já o afirmei amiúde
que Vossa Santidade até poderia ir dormir, não para a Casa de Santa Marta recusando os requintados aposentos papais mas
para debaixo de uma ponte que não será por isso que se livrará dos
fundamentalismos que se encrustam no interior da Igreja.
Não terão sido, aliás,
casuísticas as Suas infelizes declarações a caminho das Filipinas, país deles, desses fundamentalismos, encrustado, como
logo se comprovam nas manifestações literalmente crucifixais por altura da
Páscoa a lembrar outras idênticas por ocasião de algumas festividades muçulmanas
em que os crentes, pelo chicote autoinfligindo-se, igualmente se martirizam.
Não, Vossa Santidade terá
de ir muito mais longe do que isso porque o que está em causa, para além do aparato
da humildade que desencadeou, no seu cerne, contudo, é da ordem doutrinal, sob
pena de a simbólica que projeta se reduzir ou não passar de mero populismo.
À luz da fé, as manifestações crucifixais nas Filipinas referidas acima, hélas,
constituem, de facto e essas sim porque replicantes do próprio Sacrifício,
blasfémia, uma vez que Cristo foi
crucificado com esse gesto libertando a Humanidade e para que mais ninguém o
viesse a ser, sendo certo que a Igreja com tais práticas contemporiza!
À luz de Fátima, por seu turno e já agora, as
caminhadas sacrificiais de joelhos, ainda assim, estão-lhes a um patamarzito de
distância o qual permite uma certa contemporização mas sempre, devia-o ser mas
não é (!), acompanhadas de condenatória e institucional dissuasão, uma vez que
vermo-nos livres da crendice é muito difícil senão mesmo impossível e mais vale
tê-la ao abrigo do guarda-chuva da Igreja ou das igrejas do que descontrolada e
à solta.
4 - A Igreja corre o risco
de perder o enfoque e, logo, o pé.
Em nome do ecumenismo e do
diálogo inter-religioso que a leva a temer ferir sensibilidades, não pode ficar
refém dos fundamentalismos e, logo, a começar por aqueles que no seu seio
espreitam apenas por uma oportunidade ao arrepio, aliás, de tudo o que almejou.
E se, para variar, o Papa
exercesse do rigor em relação ao inominável e da flexibilidade e do fairplay em relação às liberdades e aos
costumes, temporalidades em relação às quais, aliás, pura e simplesmente e quantas
vezes concupiscente, não se deveria intrometer?
É que, convenhamos, se
teoria é teoria e a prática outra coisa, que a humanidade, como o diz, se
restrinja, então, àquilo que deve e não o contrário o que, aliás, até o Seu
tresmalhado rebanho e esta Sua ovelha, em particular, muito Lhe agradeceriam.
5 - Exemplifiquemos de
forma crua e nua, os macaquinhos no sótão dos quais a Igreja tarda em se
livrar, despojando, por um momento que o seja, a Sagrada Família da narrativa mística que a sacraliza:
Há lá família mais
desestruturada!
Maria, virgem mas dando à luz um filho, paradoxo nos termos;
Cristo, filho de um pai incógnito;
José, um padrasto distanciado;
Uma família a roçar,
portanto, a monoparentalidade;
Cristo, de novo, circulando pelas margens da sociedade de então e acabando preso
e julgado pela justiça da época, condenado à morte e crucificado, a pior e mais
ignóbil das condenações a sofrer, na presunção herética reveladora do tremendo complexo de Édipo de se presumir filho
de deus, o próprio imperador, portanto, à época o único deus vivo que Cristo se encarregou, Ele próprio, de
dessacralizar declarando-o, ao imperador, entenda-se, acessível à cidadania
universal ao sublinhar que por Sua via, por via do Seu Sacrifício, todos
seriamos finalmente libertados, a todos nos concedendo não apenas soberania mas
a hipótese esperançosa e democrática, soberana do poder que hoje, mais do que
nunca, se impõe;
Mais paradoxal ainda,
filho de um Outro deus?
Loucura, insanidade,
subversão total!
Mas ao se despojar assim a
Sagrada Família, ela remete para os
nossos dias na sua plena, acutilante atualidade e para os desafios que
atravessam a modernidade:
Antes de mais o da
centralidade do amor, logo, da lateralidade dos géneros na manifestação da
sexualidade enquanto sua expressão singular para lá, muito para lá da
reprodutividade, tout court;
Das novas formas de
organização familiar;
Da inseminação artificial;
Da clonagem, já que ele
próprio, Cristo igual a Deus;
Do poder ao alcance de
todos, de cada um de nós no exercício da nossa singular e perseverante
cidadania;
Etc., etc., etc.
Não, a Sagrada Família tem tudo menos do
suposto padrão tradicional de família e despojada assim e nas tremendas
questões ditas fraturantes, ditas porque o não são que levanta, apenas Vós
insistis em que como tal se eternizem, o Mistério reabre-se em todo o seu
esplendor e tanto mais quanto vindo de tão recuado no tempo, até nós
sobreviveu.
6 - Ecumenismo e diálogo
inter-religioso fazem todo o sentido, urgem mesmo, mas para que eles sejam
profícuos para todos ninguém pode perder a sua identidade, no respeito e na sã
convivência com a laicidade e na completa abertura aos agnósticos como aos
ateus, e têm de ser precedidos, antes de mais, pela própria evangelização da
Igreja tão em défice, ela sim, Igreja, campo fértil para a Evangelização e
desde que levada a cabo neste espírito completo de abertura.
Crentes e não crentes ou a
razão de Fé e a fé na razão podem e devem convergir, no meu modesto
entendimento eis a grande aproximação a fazer e em direção à qual as agulhas
deveriam ser assestadas, não paro, aliás, de diligenciar nesse sentido até
porque o próprio terror, não gosto da palavra terrorismo que faz lembrar outros
tempos e conotações, os anglo-saxónicos são nisso, regra geral, muito mais
assertivos do que os latinos, o próprio terror, escrevia, joga com esses dois
pesos pesados e centrais da modernidade, esses sim complementares, para os
apartar, dividir e virar um contra o outro.
É neles, isso sim, que a
Igreja deve por o seu enfoque e dos quais dependerá a sua própria
revitalização, sobretudo, sem cair na tentação de invocar em vão o Santo Nome como se numa
permanente crise de Fé em que, quantas vezes, Ela parece, penosamente,
arrastar-se e que mais não revela do que o medo da própria Liberdade.
Porque Deus está em todo o
lado e em cada palavra que se diz ou não fora Ele Verbo no princípio.
Santidade,
Termino por onde comecei,
agora repegando a palavra de ordem JE SUIS / CHARLIE:
Já reparou na similitude
imagética, coincidência ou não, entre JE/SUIS,
mais a mais quase pegados e JESUS ou JÉSUS em francês qual Charlie = Jesus do século XXI?
Ironias da História:
Um dos símbolos da
irreverência livre, porque a Liberdade, repito, por natureza a implica, sacrificado
no altar dos fundamentalismos radicais!
É que o que escrevi antes
remete para a própria consciência da Igreja na sua falta de fairplay, sempre o fairplay, em conviver com a irreverência máxima, isto é, livre.
Não, esta palavra de
ordem, JE SUIS CHARLIE, subliminarmente
e no grafismo em que surge formatada, é tudo menos inócua ou delicodoce como
alguns sugerem e, objetivamente, interpela-Vos diretamente!
E se a Igreja se livrasse
da tralha colocando as cartas em cima da mesa sem quaisquer subterfúgios, por
paradoxal que possa parecer, estou certo que veria o terreno desarmadilhado
livrando-se da desconfiança que gera, historicamente justifica-se, a
evangelização é sempre olhada pelas outras religiões com justificada
desconfiança, então sim, repito, veria o terreno desarmadilhado e aplainado
quer para o ecumenismo como para o ingente aprofundamento do diálogo
inter-religioso.
Com a humildade bastante,
Vosso
se tudo tem pés de barro, antes um barro seco e não
molhado ainda por moldar uma vez que se moldados já fomos, eis o que nos
distingue da barbárie, antes quebrar que torcer
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Janeiro de 2015