segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O SECRETO DO QUE ESCREVO

Picasso, Nu, Feuilles Vertes et Buste

 
 
Há um perfil secreto no que escrevo que se vai dando a conhecer.
Aqui estou eu, aquele que te escreve, tu que me lês, o mais variado e indefinível tu que o possas ser e o meu alter-ego, nu de mim mesmo, outro eu que pelos contornos do que escrevo se vai, no que pinto ou rabisco, materializando.
Três em um, eis o secreto naquilo que escrevo e que lhe confere dimensão.
Não que o queira secreto mas porque, como num esboço, é pelo sombreado do que escrevo que se vão realçando os seus contornos.
 
Escrevo como poderia pintar na certeza de que o nu, esse paradigmático modelo, é a mais escondida, difícil de todas as verdades esboçáveis.
Do sombreado à luz.
Da matéria negra ao material percetível.
Do que não se vê ao que, sendo visível, é-o porque se sente e ouve.
 
Fantasia.
A minha escrita é uma fantasia real.
Tão real quanto a escrita o permite ser.
Cinge-se ela a um relato, dia após dia, num olhar próprio, despido, o meu.
Focado para lá de todos os circunstancialismos.
Nesse para lá, o perfil do que, encoberto, pelo esboço se vai revelando.
Descobrindo.
Como se, para lá de mim mesmo, falasse, me correspondesse, por tua via, minha incontornável sombra, comigo próprio.
Sempre tendo em conta que tu, aquele indefinível tu que me lê, está presente.
Esse tu tão real quanto eu o sou.
 
O indefinível tu.
Não te consigo definir.
És tantos tus quantos aqueles que me leem.
Que me sombreiam definindo-me.
Desses tus, em interação comigo e com o meu alter-ego, esse confiável eu, dos sombreados sua sombra, contornos em que vos pinto, descobrindo se vai desnudando.
Nos espaçamentos que sobram ao que te escrevo.
 
Alter-ego.
Espaçamentos do que vou escrevendo.
O que, cingido ao que escrito está, se desprende e a que o seu sombreado vai dando forma.
Busto de um despido nu de mim mesmo.
Ao secreto nu, por mais que o revele, sempre, em mim e no entanto, tímido se esconde.
Diáfano, compacto de translúcida claridade, como a verdade o é.


sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia
( de A Relíquia, Eça de Queirós )
 

 

Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Agosto de 2012
 
 
 

2 comentários:

Branca disse...

Jaime,

Aqui está o meu TU neste diálogo psicológico tão profundamente dissecado, a que não nos falta a acção do subconsciente...

Parabéns.

Beijinhos
Branca

Lídia Borges disse...


Da escrita, do autor, do leitor.
E da interação que promove e possibilita o ato da comunicação através da arte.


Lídia