IV - CONTA COMIGO
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O RAPAZ SÓ E A MENINA QUE NÃO VIA AS ESTRELAS
- O Rapaz Só era resmungão, não gostava da escola, com fama de mau aluno fazia tudo para a manter e até tinha um certo orgulho nisso. Os professores às vezes perdiam a paciência e muitos desistiam de o ajudar. Apenas uma das professoras conseguia ver para lá da arrogância e do desinteresse, o rapazinho assustado e só, que ele realmente era.
Tinha poucos amigos e como não sabia resolver os problemas pacificamente assustava os mais novos e a sua atitude arrogante afastava os companheiros.
O Rapaz Só não gostava de ser tocado, mal alguém o agarrava, puxava um braço ou lhe segurava a mão, reagia com violência e sacudia os outros afastando-se.
Os avós diziam:
"É um rapaz valente, não tem medo de nada", mas sentiam que ele não era feliz, que fingia apenas ser grande e forte.
Às vezes antes de adormecer o Rapaz Só, sentia de novo a mão da mãe que o tocava levemente no rosto, lhe afagava a nuca e todos os medos se desvaneciam e ele já não era o Rapaz Só, mas um menino da sua mãe a brincar de novo na areia da praia, a enfrentar com ela as ondas, a gritar de alegria como as gaivotas, a mergulhar como os golfinhos, a galopar Cavalos Marinhos. Muitas vezes faltava à escola, fugia para a praia e numa rocha solitária ficava ali, a conversar com o mar e a contar-lhe das saudades que tinha da sua mãe, até o sol se pôr, até as estrelas começarem a piscar.
O Rapaz Só era fraco a Matemática e a Português, mas conhecia bem as estrelas, as constelações, os seus nomes e o seus desenhos nas noites estreladas.
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A Menina Que Não Via as Estrelas, era pequenina para a idade, tímida e envergonhada. Passava a vida a tropeçar, esbarrava nas pessoas e chegava muitas vezes atrasada à escola porque, sem saber como, enganava-se no autocarro que tinha de apanhar todas as manhãs.
As pessoas diziam:
"Que menina distraída, parece que não vê o que está mesmo à frente do nariz!".
A Menina suportava tudo isto pacientemente, sabia que era míope e que precisava de óculos, mas a mãe adiava esta questão, porque havia sempre qualquer coisa mais importante do que ela lá em casa: o casaco para o irmão mais velho, as botas para o mais pequeno e a conta do gás; mas do que ela tinha verdadeiramente pena era de não conseguir ver as estrelas! Ela sabia que existiam, lá bem alto no céu, mas conhecia-as apenas pelas ilustrações dos seus livros de estudo.
A professora da Menina Que Não Via as Estrelas, sentava-a perto do quadro, explicava-lhe as lições e até já andava um pouco zangada com esta mãe e com o seu projecto de óculos eternamente adiado.
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A Menina Que Não Via as Estrelas e o Rapaz Só, encontravam-se às vezes no pátio da escola e apesar de tão diferentes e distantes começaram a conversar, a contar onde viviam, o que faziam, as coisas de que gostavam e as coisas que odiavam.
O Rapaz falou dos avós, das saudades que tinha da mãe, de como não gostava da escola, da sua rocha na praia e das suas escapadelas nas noites de luar.
A Menina falou da dificuldade que tinha em ver as coisas distantes, de como gostava da escola e da professora, de como às vezes se sentia só no meio da sua grande família e da sua tristeza por não poder ver as estrelas.
O Rapaz disse:
"Não faz mal, eu conheço bem as estrelas e vou-te ensinar tudo o que sei sobre elas e assim não te vais esquecer de nada e será como se as pudesses observar!".
Então, todos os dias se encontravam e todos os dias falavam da ciência das estrelas e da ciência das suas vidas.
E a pouco e pouco o Rapaz foi aprendendo a dar e a receber e quando a Menina lhe pousava a mão sobre o ombro ele já não saltava desconfiado.
Um dia a Menina recebeu finalmente os seus óculos cor-de rosa e depois das aulas foi com o Rapaz à praia e este mostrou-lhe a rocha solitária onde se costumava sentar. Ficaram muito tempo ali, os dois a contemplar o sol e a rirem-se das coisas espantosas que a Menina via com nitidez. Não arredaram pé até a noite chegar, a invisível Lua Nova fazia o céu resplandecer de escuridão e aí pela primeira vez a Menina Que Não Via as Estrelas viu as estrelas e o Rapaz Só apontou-as uma a uma e juntos disseram o nome de cada uma delas.
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No dia seguinte, na aula de Português, o Rapaz Só começou a escrever, a escrever sem nunca mais parar, soltou a alegria imensa que tinha sabido partilhar e sentiu-se bem e feliz. Quando a professora lhe pousou a mão sobre a nuca para recolher o teste, o rapaz estremeceu, mas em vez de se encolher e afastar, sorriu e disse:
" Eu hoje gostei desta aula, professora!"
Ao mesmo tempo na aula de Ciências a Menina Que Não Via as Estrelas, orgulhosa dos seus óculos novos, conseguiu ler as perguntas escritas no quadro e sem hesitar respondeu a todas e não errou nenhuma. Por baixo assinou: "Menina Que Vê as Estrelas".
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À Isabel Venâncio que inspirou O Rapaz Só,
à Filomena que deu vida à Menina Que Não Via as Estrelas,
aos Professores que sabem fazer a diferença e sair do Fundo do Pântano.
http://www.youtube.com/watch?v=Vbg7YoXiKn0
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Celebrando:
"Stand By Me"- Conta Comigo- 1986
Realizador: Rob Reiner
Música: Ben E. King
"Au Revoir Les Enfants", "Adeus Rapazes"-1987
Realizador: Louis Malle
"Les Choristes"-2004
Realizador: Christophe Barratier
Música: Bruno Coulais
e
Franz Schubert: Momentos Musicais 2
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Manuela Baptista
Estoril, 17 de Maio de 2009