O Rapaz Só era resmungão, não gostava da escola, com fama de mau aluno fazia tudo para a manter e até tinha um certo orgulho nisso. Os professores às vezes perdiam a paciência e muitos desistiam de o ajudar. Apenas uma das professoras conseguia ver para lá da arrogância e do desinteresse, o rapazinho assustado e só, que ele realmente era.
Tinha poucos amigos e como não sabia resolver os problemas pacificamente assustava os mais novos e a sua atitude arrogante afastava os companheiros.
O Rapaz Só não gostava de ser tocado, mal alguém o agarrava, puxava um braço ou lhe segurava a mão, reagia com violência e sacudia os outros afastando-se.
Os avós diziam:
"É um rapaz valente, não tem medo de nada", mas sentiam que ele não era feliz, que fingia apenas ser grande e forte.
Às vezes antes de adormecer o Rapaz Só, sentia de novo a mão da mãe que o tocava levemente no rosto, lhe afagava a nuca e todos os medos se desvaneciam e ele já não era o Rapaz Só, mas um menino da sua mãe a brincar de novo na areia da praia, a enfrentar com ela as ondas, a gritar de alegria como as gaivotas, a mergulhar como os golfinhos, a galopar Cavalos Marinhos. Muitas vezes faltava à escola, fugia para a praia e numa rocha solitária ficava ali, a conversar com o mar e a contar-lhe das saudades que tinha da sua mãe, até o sol se pôr, até as estrelas começarem a piscar.
O Rapaz Só era fraco a Matemática e a Português, mas conhecia bem as estrelas, as constelações, os seus nomes e o seus desenhos nas noites estreladas.
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A Menina Que Não Via as Estrelas, era pequenina para a idade, tímida e envergonhada. Passava a vida a tropeçar, esbarrava nas pessoas e chegava muitas vezes atrasada à escola porque, sem saber como, enganava-se no autocarro que tinha de apanhar todas as manhãs.
As pessoas diziam:
"Que menina distraída, parece que não vê o que está mesmo à frente do nariz!".
A Menina suportava tudo isto pacientemente, sabia que era míope e que precisava de óculos, mas a mãe adiava esta questão, porque havia sempre qualquer coisa mais importante do que ela lá em casa: o casaco para o irmão mais velho, as botas para o mais pequeno e a conta do gás; mas do que ela tinha verdadeiramente pena era de não conseguir ver as estrelas! Ela sabia que existiam, lá bem alto no céu, mas conhecia-as apenas pelas ilustrações dos seus livros de estudo.
A professora da Menina Que Não Via as Estrelas, sentava-a perto do quadro, explicava-lhe as lições e até já andava um pouco zangada com esta mãe e com o seu projecto de óculos eternamente adiado.
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A Menina Que Não Via as Estrelas e o Rapaz Só, encontravam-se às vezes no pátio da escola e apesar de tão diferentes e distantes começaram a conversar, a contar onde viviam, o que faziam, as coisas de que gostavam e as coisas que odiavam.
O Rapaz falou dos avós, das saudades que tinha da mãe, de como não gostava da escola, da sua rocha na praia e das suas escapadelas nas noites de luar.
A Menina falou da dificuldade que tinha em ver as coisas distantes, de como gostava da escola e da professora, de como às vezes se sentia só no meio da sua grande família e da sua tristeza por não poder ver as estrelas.
O Rapaz disse:
"Não faz mal, eu conheço bem as estrelas e vou-te ensinar tudo o que sei sobre elas e assim não te vais esquecer de nada e será como se as pudesses observar!".
Então, todos os dias se encontravam e todos os dias falavam da ciência das estrelas e da ciência das suas vidas.
E a pouco e pouco o Rapaz foi aprendendo a dar e a receber e quando a Menina lhe pousava a mão sobre o ombro ele já não saltava desconfiado.
Um dia a Menina recebeu finalmente os seus óculos cor-de rosa e depois das aulas foi com o Rapaz à praia e este mostrou-lhe a rocha solitária onde se costumava sentar. Ficaram muito tempo ali, os dois a contemplar o sol e a rirem-se das coisas espantosas que a Menina via com nitidez. Não arredaram pé até a noite chegar, a invisível Lua Nova fazia o céu resplandecer de escuridão e aí pela primeira vez a Menina Que Não Via as Estrelas viu as estrelas e o Rapaz Só apontou-as uma a uma e juntos disseram o nome de cada uma delas.
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No dia seguinte, na aula de Português, o Rapaz Só começou a escrever, a escrever sem nunca mais parar, soltou a alegria imensa que tinha sabido partilhar e sentiu-se bem e feliz. Quando a professora lhe pousou a mão sobre a nuca para recolher o teste, o rapaz estremeceu, mas em vez de se encolher e afastar, sorriu e disse:
" Eu hoje gostei desta aula, professora!"
Ao mesmo tempo na aula de Ciências a Menina Que Não Via as Estrelas, orgulhosa dos seus óculos novos, conseguiu ler as perguntas escritas no quadro e sem hesitar respondeu a todas e não errou nenhuma. Por baixo assinou: "Menina Que Vê as Estrelas".
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À Isabel Venâncio que inspirou O Rapaz Só,
à Filomena que deu vida à Menina Que Não Via as Estrelas,
aos Professores que sabem fazer a diferença e sair do Fundo do Pântano.
À Isabel Venâncio que inspirou O Rapaz Só,
à Filomena que deu vida à Menina Que Não Via as Estrelas,
aos Professores que sabem fazer a diferença e sair do Fundo do Pântano.
http://www.youtube.com/watch?v=Vbg7YoXiKn0
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Celebrando:
"Stand By Me"- Conta Comigo- 1986
Realizador: Rob Reiner
Música: Ben E. King
"Au Revoir Les Enfants", "Adeus Rapazes"-1987
Realizador: Louis Malle
"Les Choristes"-2004
Realizador: Christophe Barratier
Música: Bruno Coulais
e
Franz Schubert: Momentos Musicais 2
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Manuela Baptista
Estoril, 17 de Maio de 2009
10 comentários:
OCORRE-ME ESCREVER
A busca da excelência implica reinvenção, não da Humanidade, que presunção (!) mas da sua essência humanística.
Que quero eu dizer com isto e a que propósito nesta página?
Que todos somos diferentes e que não há que expurgar as nossas diferenças mas antes valorizá-las;
Que sem isso não nos podemos complementar ou completar tão pouco, ao ponto de um Rapaz Só deixar de o ser ou de uma Menina que não via as Estrelas conseguir passar a vê-las;
Que a excelência, por fim, não reside em nos escamotearmos ou escondermos as nossas limitações antes em admiti-las e partilhá-las sem o que, esse desirato, o desirato da excelência se torna inalcançável e ainda mais do que o céu ou as estrelas.
Um bom professor não é aquele que se refugia no seu palanque inacessível e altivo, longe das preocupações, das angústias e dos problemas dos seus alunos mas antes aquele que dá companhia a um Rapaz Só ou estrelas a uma Menina que as não conseguia ver.
Às vezes um bom professor está onde menos se espera!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Maio de 2009
Meus Amigos!
Que linda maneira de começar a semana!
Ler em voz alta, embargada pela emoção, este conto tão verdadeiro.
Também li o texto da Isabel sobre o rapazinho.
Hoje é dia da Prova Aferida de LP e eu, que sei que a minha menina além de não ver ao longe, também não vê ao perto, emprestei-lhe os meus óculos( empresto-lhos muitas vezes, apesar de saber que não é a solução ideal). A minha menina de olhos muito grandes e negros e muitas vezes vermelhos do esforço que faz,fica muito feliz por ter os óculos da professora( esta professora vaidosa que nunca anda com de óculos porque lhe ficam mal e ela prefere não ver as desgraças do Mundo e as rugas dos amigos).
Ainda bem que existem pessoas assim.
Que conseguem escrever coisas tão lindas e colocam lágrimas de ternura nos olhos de quem as lê.
Eu gosto sempre de ver as estrelas.
Beijinhos aos dois
Filomena
Ver As Estrelas
Filomena,
A menina dos olhos grandes e negros tem sorte em ter uma professora que lhe empresta os óculos para as provas de aferição, mas terá tido azar com a família onde nasceu, com os apoios de saúde que não tem, com o país a que pertence? Nasceu ela no fundo do pântano?
Façam a diferença, contactem o Centro de Saúde,incomodem a Segurança Social e os voluntários da zona, em último recurso informem a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e se nada disto der resultado venda a minha história e faça rifas.
Eu sei que é fácil falar, mas vou tentar entrar na linha directa com o Primeiro Ministro, talvez ele me responda...em directo?!
REINVENÇÃO
Ana Cristina,
Eu conheço alguém que reinventou a Solidariedade e a Esperança para muita gente, aqui ao pé do mar...
Se coexistíssemos todas juntas no mesmo espaço e tempo, esta menina já teria os seus óculos cor-de-rosa ou às riscas se ela quizesse.
A opulência manifesta-se de muitas formas,por exemplo uma IPSS aqui do Estoril endivida-se, apesar da riqueza dos seus contribuintes, constrói uma Igreja megalómana e um auditório com 600 lugares, para "espectáculos de dança, teatro, concertos".
As minhas dúvidas são estas:
-quantos auditórios existem na mesma zona e que poderiam ser rentabilizados?
Ao fundo da minha rua descansa o enorme pavilhão dos congressos, que é ocupado quantas vezes por semana?
-quem é o público alvo? A população moradora no bairro social, ou os que podem pagar bilhete e têm acesso a estes bens culturais?
Beijinhos às duas e até logo
Manuela Baptista
IPSS
( Isto Por Si Sós )
Isto Por Si Sós é quando alguns se julgam bastantes para porem e disporem, ajuizarem sobre tudo e todos e mesmo se perderam completamente o pé e quando não, mesmo dentro de suas próprias casas.
Cantam de alto que nem uns galarós convencidos e mesmo se outros os calaram na discrição de quem não necessita do alarde para dizer ou escrever de sua razão no atordoado silêncio que se gera como não resposta faltosa que se instala, carente de qualquer disponibilidade.
Sem ponta de generosidade!
Isto Por Si Sós é o que se pode tornar em metáfora de uma sigla que pese embora nos dizerem sermos merecedores de mais ou de outros não estarem, nem pouco mais ou menos, à nossa altura, faz crescer à sombra de um paupérrimo relacionamento uma IPSS que assim, se tem dinheiro e ainda que endividada, não tem, de facto, pernas para andar!
Porque uma IPSS é muito mais do que uma estrutura física!
Há alguns, que parecendo Rapazes Sós ou Meninas Que Não Viam as Estrelas estão muito mais acompanhados e vêem muito para lá das estrelas enquanto que outros, gozando do brilho que não têm estão sós e podendo nem olham, porque não têm nem querem ter tempo, para as estrelas!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Maio de 2009
Meus Amigos,
O problema da Patrícia, a minha aluna, seria fácil de resolver se a mãe já a tivesse levado à consulta que a Escola lhe marcou para que depois os procedimentos corressem, muito naturalmente com a ajuda do pp Conselho Executivo.Mas esta mãe nem isso faz!
o caso já está nas mãos da psicóloga da escola e é tudo muito bonito... e entretanto uma criança anda a perder a visão.
É só.
Beijinhos
Filomena
É só e já é muito!
Beijinhos
Manuela Baptista
Para o Jaime,
estás enganado! IPSS significa:
I- Inflectindo
P- Poemas
S- Seduzindo
S- Sentimentos
não é, Nini?
Manuela Baptista
PARA TI
Manuela,
Esse é outro tipo de IPSS(s)!
Beijinhos
Jaime Latino Ferreira
Estorilo, 18 de Maio de 2009
Pois é Manuela,
acho que não haveria uma menina sem óculos se coexistissemos no espaço onde tantas coisas fizemos, inventámos e reinventámos.
Sem burocracias
Sem degraus
Sem constrangimentos
Com clarividência
Com objectivos
Com prioridades
Com proximidade
Com decisão
Com rapidez
As "minhas" IPSS de Cascais sempre me ouviram recomendar: façam pequeno, façam útil,rentabilizem os recursos, não façam aquilo que outros já fazem, façam aquilo que ainda falta ... sempre com qualidade, com sustentabilidade, em parceria e em rede real, nunca virtual.
Parece que há sempre aqueles que ao fundo da nossa rua ou na rua ao lado preferem o protagonismo e a megalomania.
Tenho saudades dos tempos em que coexistimos e realizámos a solidariedade no dia a dia.
Mas a "minha" Segurança Social de Cascais parece que também já não existe...migrou para os gabinetes de Lisboa.
Pensar local e decidir local.
Territorialização e proximidade.
Extinguir os circuitos hierárquicos que não trazem valor acrescentado e apenas existem para colocar 1 visto.
Emagrecer as organizações que com obesidade se afastam dos cidadãos, funcionam sentadas via web sem rosto e reproduzem elas mesmas a pobreza intergeracional.
Afirmo sem pudor:há quem precise dos seus pobrezinhos e lute por eles para sobreviver enquanto tal!
Enfim,levar a menina de olhos negros a uma consulta e adquirir os óculos que o médico lhe prescrever....
É fácil e pode ser feito.
Nós sabemos que sim, não é Manuela!?
I-Imaginar
P-Planear
P-Praticar
S-Sentir
1 abraço.
Nini
É mesmo assim Ana Cristina!
E aqui deixo a letra da canção com que os meninos do internato, baptizado "O fundo do pântano", se despediram do professor de música (no desemprego), porque ousou ser justo, imaginar,planear, praticar e sentir.
Como
a minha Chefe,
como o Professor Jaime,
como a Professora Filomena,
como a Professora Isabel.
Insolente viagem a nossa!
Cerf-volant
Volant au vent
Ne t'arrête pas
Vers la mer
Haut dans les airs
Un enfant te voit
Voyage insolent
Troubles enivrants
Amours innocentes
Suivent ta voie
Suivent ta voie
En volant
Cerf-volant
Volant au vent
Ne t'arrête pas
Vers la mer
Haut dans les airs
Un enfant te voit
Et dans la tourmente
Tes ailes triomphantes
N'oublie pas de revenir
Vers moi
Um grande abraço a todos
Manuela Baptista
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