segunda-feira, 25 de maio de 2009

SEM PÁGINAS DE UMA ARTE

V- OS SAPATOS VERMELHOS
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O Lugar Onde Dormem os Sonhos
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A Professora gostava de sapatos vermelhos. Vermelhos como o fogo, como as cerejas de Maio, como o pôr-do-sol de Agosto, como o tomate maduro, como as fitas do cabelo, como o sangue, como a vida, como a alegria de um dia de sol.
Quando ela calçava sapatos pretos, os meninos que já a conheciam muito bem diziam:
"A Professora hoje está triste!"
Ou verdes:
"A Professora hoje está zangada!"
Ou azuis
"A Professora hoje está distraída!"
As outras professoras tinham inveja dos seus sapatos vermelhos, de laços, sem laços, de saltos, sem saltos, de pala, sem pala e cochichavam:
"Vaidosa, que mania esta de ter fogo nos pés!"
O director repetia:
"Vaidosa! Faria melhor se fosse mais discreta."
Os meninos sabiam que a Professora, muito mais que vaidosa, era sobretudo bondosa, sempre pronta a ajudá-los, a defendê-los, a lutar para que fossem os melhores e era uma alegria quando iam para as suas aulas e não tinham medo de errar, de entaramelar as palavras difíceis, de trocar o pelo quê.
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Num dia chuvoso de uma Primavera incerta, os meninos estavam irrequietos, dispersos, um pouco brigões e barulhentos. A gramática não os interessava e escrevinhavam uns textos sem nenhum entusiasmo.
A Professora cansada de os mandar calar e tentar que se concentrassem, deu um grito, saltando para cima da secretária e com as suas sapatilhas vermelhas, um pouco molhadas da chuva, executou três passos de dança e um rodopio. Fez-se um silêncio de espanto!
"Professora! Está a dançar!" disse incrédula uma menina chamada Clara .
"A Professora está a dançar!" disseram todos.
E a Professora tirando da mala um livro de capa colorida, onde se podia ler "Quebra-Nozes" de Hoffman, pediu a um dos alunos que começasse a ler e foi dançando cada linha do primeiro capítulo como quem desenha numa folha em branco.
Os meninos maravilhados e mudos assim ficaram até que o som estridente da campainha os acordou violentamente.
A Professora desceu da secretária e calmamente disse:
"Até amanhã!"
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Na manhã seguinte as crianças estavam ansiosas para que as aulas começassem e foram os primeiros a chegar à sala e sentaram-se calados e expectantes.
A Professora entrou, abriu o livro de exercícios e as crianças desapontadas repararam que os seus sapatos eram pretos.
Então Clara perguntou:
"E o Quebra-Nozes, Professora? Só lemos o primeiro capítulo."
E outro menino, a quem chamavam Rato por ser muito pequenino e esperto, disse:
"E hoje não dança, Professora? Foi tão bonito!"
"A Professora é uma bailarina!" disse um terceiro.
A Professora fechou o livro e com uma voz um pouco cinzenta explicou aos meninos que poderiam terminar a história da véspera, mas dançar, não dançaria, porque dançar era acordar um sonho que adormecera há muito tempo e que ela tinha ousado acordar e isso tinha-a entristecido.
"Os sonhos dormem?"- perguntaram.
"Dormem, quando não os podemos realizar."- respondeu a Professora.
"E qual é o lugar onde dormem os sonhos?" perguntou Luísa, irmã de Clara.
"O lugar onde dormem os sonhos é assim como um grande lago, só que em lugar de peixes, algas, nenúfares, rãs e mosquitos embala nas suas águas os sonhos que as pessoas sonharam e que não se concretizaram e ficam ali à espera de ser acordados ou a dormir para sempre."respondeu a Professora.
"A minha mãe também tem um sonho adormecido" -disse o rapaz chamado Rato.
"Ela gostava de viajar até à Itália e conhecer Veneza"-acrescentou.
"Eu também tenho um sonho!"-disse a pequenina Gisela. "Quando for grande quero ser pianista."
E as crianças começaram todas a contar sobre os seus próprios sonhos e os sonhos dos pais, dos avós e dos amigos e a Professora disse-lhes então:
"Para concretizar os vossos sonhos, para os acordar, é preciso lutar por eles, com paciência, com perseverança, sem desanimar, às vezes durante toda a vida. É mais difícil do que mil provas de matemática!".
"E a Professora, porque é que não quer acordar o seu sonho?" perguntou Gisela.
A Professora olhou com atenção para aqueles trinta pares de olhos onde brilhavam trinta pontos de interrogação e pensou que aqueles meninos eram merecedores de conhecer o seu segredo guardado naquele lago distante de que falara.
E contou como tinha aprendido a dançar desde pequenina, das suas sapatilhas vermelhas com que se apresentava nos exames, da sua vontade de ferro em ser bailarina e da dor que sentira um dia no pé esquerdo e no coração.
Uma dor dupla que a impedira de dançar nesse dia e nos dias seguintes, uma dor que médico algum curara, apenas minimizara a do pé esquerdo e aumentara a tristeza do seu coração. Podia dançar um pouco, mas nunca se tornaria bailarina profissional.
O seu sonho vivia há muito nesse lugar onde dormem os sonhos e tinha-se transfigurado noutros sonhos.
Contou também, como depois estudara e se tornara professora, que gostava de ensinar e de escrever histórias para lhes ler e era para recordar a dança, que quase todos os dias calçava sapatos vermelhos.
Ao ver a tristeza das crianças prometeu:
"Amanhã, vamos continuar a ler a história do "Quebra-Nozes". Preparem-se!"
E aquele "preparem-se" ficou a soar nas suas cabecinhas, dormiu e acordou com elas e cada uma sem contar nada às outras percebeu o que deveria fazer.
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Nessa manhã a Professora calçou os seus mais bonitos sapatos vermelhos, colocou na bolsa um disco com a suite "Quebra-Nozes" de Tchaikovsky e sem saber porquê sentiu-se leve e feliz.
Chegou à escola, disse "Bom dia!", ao porteiro, ao director, às colegas e a todos os alunos que por ela passaram e rapidamente entrou na sua sala.
As crianças sentadas nas suas cadeiras ordenadamente, levantaram-se e saudaram:
"Bom dia Professora!" e foi aí que a Professora olhou para os seus pequenos pés que não conseguiam manter quietos e viu que todos, mas todos, rapazes e raparigas, tinham calçado sapatos vermelhos!
Continuaram então a ler o "Quebra-Nozes", mas desta vez havia um papel para cada um com os personagens da história: Clara, Luísa, Fritz, o Rei dos Ratos, os soldadinhos de chumbo, as bonecas, o Astrólogo da Corte, o Relojoeiro, a Dama Rata Rabujenta, as Donzelas, a princesa Pirlipat e é claro o Quebra-Nozes!
E, como se fosse a coisa mais natural deste mundo, começaram a dançar a história e a sala de aula não era mais uma sala mas um palco, onde as cadeiras voavam, os lápis falavam, os papéis ganhavam vida e pintavam-se a si próprios, o quadro era um espelho brilhante e as borrachas eram nozes saborosas! E assim passaram os noventa minutos de aula.
O director, incomodado por um ruído qualquer, torceu o seu nariz afilado, começou a cheirar cada porta e parou justamente à porta da sala da Professora abrindo-a de repente, convencido que iria encontrar uma enorme confusão.
As crianças estavam sentadas, com os livros e cadernos alinhados à sua frente, apenas os olhos brilhavam, algumas gotas de suor escorriam pelas suas faces coradas e os sapatos vermelhos agitavam-se por baixo das cadeiras.
"Mas que bizarro"- resmungou. "Agora parecem todos bailarinos, onde é que andaram?".
E a Professora respondeu:
"Não se preocupe, para si seria muito longe! Regressámos do lugar onde dormem os sonhos."
Nesse dia o dono da sapataria verificou com espanto que os sapatos vermelhos tinham-se esgotado nas prateleiras.
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http://www.youtube.com/watch?v=aVxgjZKnRbU
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Celebrando:
- "The Red Shoes", Os Sapatos Vermelhos- 1948
Realizador: Michael Powell e Emeric Pressburger
Música: Brian Easdale
-"Fantasia" de Walt Disney-1940: The Nut Cracker suite
música: Tchaikovsky
-"Quebra-Nozes" de E.T.A. Hoffmann
ilustrações: Lisbeth Zwerger
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Manuela Baptista
Estoril, 25 de Maio de 2009

12 comentários:

Ana Cristina disse...

Ando por aqui
Para vos manter debaixo de olho e acompanhar as "deambulações" virtuais do Jaime (... e da Manuela à boleia"!).

Mas ando sem geito.
Lá diz o povo "elas não matam mas moem".
Ando moída.
Falta pouco para me convencer que sou a pessoa errada.

Mas...my life is okay ...ich bin immer dabei...e volto sempre.

1 abraço muito amigo da
Ana Cristina

*adoro o Quebra-Nozes ;)

Anónimo disse...

Manuela!

Eu sabia, eu andava à espera, eu tinha a certeza, que iria escrever esta história. À Sua maneira, com o seu sentir muito próprio.
Foi hoje. Hoje que estou particularmente triste e desiludida.

Hoje. Para poder voar até ao lugar onde os sonhos dormem e por lá ficar o tempo que eu quiser. Com as velhas sapatilhas de cor rosa escondidas no coração. E a noite toda dançarei
Boa noite


Filomena

manuela baptista disse...

Ana Cristina,

parece-me que está a precisar de uns sapatinhos vermelhos! Não é preciso jeito para dançar, dança-se, não é preciso jeito para ser quem somos, somos.

Pegue lá nestes sapatos e pesque um sonho adormecido.

Um grande beijinho

Manuela Baptista

manuela baptista disse...

Filomena,

eu sabia que as suas sapatilhas eram cor-de-rosa, por isso lhes dei umas pinceladas vermelhas!
Não dance sózinha,espere aí um bocadinho por nós...

Agora peço ao Jaime que venha alegrar as meninas tristes, ele vai pensar que eu é que tenho a culpa.

Um beijinho

Manuela Baptista

To e Li disse...

Manuela!

Que bom que foi chegar aqui e deparar com esta história! Precisava mesmo disto hoje para me aquecer a alma... também tenho umas sapatilhas escondidas, que não vão passar de sonhos.
Bjs
Linda

Jaime Latino Ferreira disse...

AI MENINAS QUE SEM JEITO VOU E VENHO


Eu também, tenho umas sapatilhas escondidas vindas desse lago imenso a que se chama sonho.

Acontece que não têm cor, melhor, são multicolores, não têm formato definido, melhor, parecem-se com letras ou esvoaçam por aí, se dançam cantam também e se cantam, escrevem-se, rabiscam-se ou dizem-se tal como esta história de minha mulher, vou-as conhecendo surpreendido da mesma forma que vós e ao sabor e estou sempre pronto a dar-lhes, sem regatear, pronta boleia!

Não, não tens culpa minha gentilíssima mulher, nem Vós minhas queridas amigas que se estais tristes ou sem jeito, de alma aquecida ou não ou julgando, tão só, que as sapatilhas que guardais em sonho não se transformarão, isso acontece apenas porque não estais, talvez, a olhar bem para elas ...

A sapatilha é uma metáfora e quanto ao sonho ele emoldura a realidade e nada garante que não a possa vir a seduzir!

Beijinhos a todas


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Maio de 2009

Jaime Latino Ferreira disse...

PESSOA ERRADA


Pessoa errada não há e quando nos interrogamos se a seremos já estamos a admitir que a não somos.

Mal seria se não nos interrogássemos ...!


Ana Cristina,

Minha querida, sabia que passados vinte anos sobre o início de uma Obra que não pára de crescer, tenho momentos em que faço a mim mesmo essa mesma interrogação!?

Normalmente são momentos fugidios mas de intensidade profunda que me abalam, questionam de alto a baixo ...!

Mas logo há qualquer coisa que me diz que não e uma das razões porque disso me convenço reside no facto de constatar estar a mim mesmo a fazer essa angustiante pergunta.

Questionarmo-nos assim, demonstra apenas a nossa lucidez e mesmo se a essa primordial pergunta outras muitas se lhe possam acrescentar.

Quem não se questiona aí sim, estamos diante de uma irrazoabilidade que não se encara como Pessoa.

Vá-se interrogando, Minha Amiga, que vai, seguramente, pelo melhor caminho!

Um beijinho


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Maio de 2009

manuela baptista disse...

Linda,

fiquei contente por se ter sentido mais quente com a minha história.
Eu até já pensava que o lago estava frio demais, quando eu o tinha imaginado quente e doce.
Afinal quem consegue dormir com os pés frios?

Um abraço

Manuela Baptista

manuela baptista disse...

Jaime,

obrigada pela ajuda!

Até amanhã meninos, que com imenso jeito vamos mas podemos sempre regressar.
E isso, não é uma coisa tão boa?

Manuela Baptista

jaime latino ferreira disse...

FILOMENA E MANUELA


Ena Querida Filomena,

No que deu uma história sobre sapatos ou sapatilhas vermelhas ...!

Quem quiser seguir o libreto, o guião do Quebra Nozes, faça favor de o consultar no blogue Em Segredo da Filomena onde este se encontra publicado!

E a Minha Amiga, lá venceu a tristeza e a desilusão, boa!

Deve ter dormido agarradinha às suas sapatilhas cor de rosa ...

Quanto a ti, Manuela, não tens nada que agradecer!

Beijinhos


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Maio de 2009

manuela baptista disse...

"A song of love is a sad song"*

Obrigada Filomena, pela versão original de "O Quebra-Nozes". É lindíssima!

Apesar de não possuir umas sapatilhas rosa ou encarnadas, gosto muito de dança clássica e das suas histórias: Giselle, O Lago dos Cisnes,Cinderela, Copélia a boneca por quem o jovem Franz se apaixona...

As histórias dos bailados estão mais próximas do universo mágico da infância, os cisnes podem ser meninas boas ou más, os brinquedos ganham vida e falam e os quebra-nozes dançam...

Quem pode saber, em que se tornaria um sonho adormecido se tivesse sido realizado?

Manuela Baptista

*do filme "Lili" com Leslie Caron e Mel Ferrer

Anónimo disse...

Manuela e Jaime!

Bom fim de tarde! Aqui o sol brilha.

Eu devo ter dançado muito esta noite, porque me dói o pé, o tal... se calhar é o coração que está ferido de lembranças e a dor no pé é um simples reflexo.
Uma canção de amor nem sempre é triste.
Depende do amor.
Depende da canção.


Beijinhos


Filomena